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Entrevista com a Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso
"Para chegar ao STJ, o julgador deveria ter no mínimo 10 anos de exercício no tribunal de onde está vindo"
Paranaense de Londrina, Maria do Carmo Cardoso formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1982. Pós-graduou-se em Direito Processual Civil e Penal em 1987, pela AEUDF, onde lecionou durante mais de 14 anos, tendo muitos juízes federais, advogados e operadores de Direito como seus ex-alunos.
Advogada militante por mais de 25 anos, ingressou pelo quinto constitucional no TRF da Primeira Região, onde se tem distinguido pela independência e defesa do Judiciário brasileiro. Nesta entrevista que concedeu ao Conselho Editorial da Revista Justiç@, a desembargadora federal investe contra a alegada morosidade do Judiciário, e defende o critério da antiguidade como essencial para a magistratura, advogando uma experiência mínima de 10 anos no exercício da respectiva profissão para os candidatos a vaga no Superior Tribunal de Justiça.
Justiç@: Qual sua opinião sobre os movimentos da magistratura que pretendem manter a proporção do quinto constitucional em tribunais superiores, como o STJ, impedindo que juízes de tribunais egressos da advocacia ou do Ministério Público ocupem vaga destinada aos tribunais de justiça e tribunais regionais federais?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Essa discussão começou a partir de posição manifestada pela ministra Eliana Calmon, do STJ, ao analisar a questão dos problemas surgidos com o preenchimento dos cargos do Superior Tribunal de Justiça. Sobre o tema, tenho posição definida; penso que para acesso ao STJ deveria ser exigido, no mínimo, 10 anos de exercício no órgão de origem do julgador. Não se trata de impedir que alguém oriundo do quinto constitucional tenha acesso ao Superior Tribunal de Justiça apenas por vir do quinto, como ocorre hoje nos TRTs, onde o juiz que ali chega nessa condição é impossibilitado de ascender ao Tribunal Superior do Trabalho.
Essa é, para mim, uma regra um tanto preocupante, mas entendo que deveria haver uma norma que fixasse um mínimo de 10 anos de exercício do magistrado no órgão de origem para depois poder ter acesso à Corte Superior, seja para juiz de carreira, para juiz do quinto constitucional, seja para quem for, porque para isso o julgador precisa, indubitavelmente, ter uma bagagem.
Penso que sem essa bagagem, essa experiência mínima, as coisas se tornam difíceis para o jurisdicionado. E até mesmo para nós, juízes, com relação às vacilações e intermitências da jurisprudência, que acabam por revelar falta de experiência, de conhecimento do mister.
Os tribunais precisam utilizar uma forma diferente de indicação de seus membros, privilegiando a antiguidade. Na minha opinião, um tribunal tem de se unir em torno de um nome. Não adianta irem três ou quatro nomes representando o mesmo tribunal. Considero a antiguidade um critério que precisa ser obedecido em todos os momentos e passos, pela sua importância para a magistratura.
Por exemplo, em caso de mais de um nome disputando uma vaga no Superior Tribunal de Justiça, deveríamos nos unir todos em torno do mais antigo para que ele fosse o escolhido. Isso seria a demonstração concreta de um mínimo de rigor, de razoabilidade de critério na escolha. Na verdade, se o acesso for obstado, podemos perder grandes juízes, grandes ministros, profissionais verdadeiramente vocacionados e com experiência para exercer a judicatura.
A escolha, então, deveria depender mais da bagagem, da experiência, do que desse óbice, que não leva a nada, em minha opinião.
Justiç@: Como indicada pela OAB, a senhora enfrentou o processo de formação da lista tríplice dentro da OAB, com a indicação de candidaturas formais. Qual sua opinião sobre o formalismo desse processo de escolha?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Passei pelo processo há 12 anos. Na verdade, concorri a uma das vagas abertas para ampliação do tribunal, só que demorou muito para, após a publicação da lei de ampliação, o tribunal realmente efetivar essas vagas. Eu me inscrevi na Seccional da OAB, em disputa com 15 ou 20 colegas. Fomos submetidos a uma sabatina ao final da qual os membros do Conselho votaram.
Posteriormente, a lista sêxtupla que saiu de lá foi para o Conselho Federal, onde se juntou às outras enviadas pelos demais estados da Primeira Região. No total foram 14 listas tríplices, ou seja, praticamente uma guerra. Logicamente, em todo esse processo existe muito de conhecimentos e de relações políticas, porque, na verdade, essa é uma forma de escolha em que se misturam as injunções, especialmente essa parte de conhecer as pessoas. Quando as pessoas lhe conhecem, é claro que sabem das suas competências, das suas capacidades.
É uma escolha muito delicada, um processo muito estressante, que está longe de ser uma coisa fácil. São 27 estados da Federação, com a composição de seus membros na bancada, e essa bancada tem de votar no seu nome. Na verdade, no Conselho Federal a gente tem que enfrentar uma nova sabatina, muito mais rigorosa, porque aquele conselheiro que não quer que você entre na lista procura derrubar você de todo jeito. É uma disputa muito acirrada, em que os questionamentos são técnicos. Pelo menos na minha sabatina foi assim.
Lembro que quem me sabatinou foi o professor Roberto Rosas, juntamente com os ex-presidentes do Conselho Federal do Rio de Janeiro e de São Paulo. Foi no momento em que se falava muito sobre a súmula vinculante, e quase todos os advogados eram francamente contrários, por entenderem que seria um elemento de engessamento da jurisprudência. Perguntada sobre isso, respondi que era a favor, e o mundo quase caiu em cima de mim. Mas eu sustentei ser a favor da súmula vinculante tão somente naquelas matérias que foram discutidas em todas as instâncias, isto é, que saíram lá de baixo e chegaram até o Supremo Tribunal Federal.
Esse posicionamento me tirou alguns votos, com certeza. Logicamente, não sou a favor daquela súmula vinculante que vem de cima para baixo, essas que, infelizmente, têm acontecido. E dessas que eu defendo, desafortunadamente até agora só tivemos uma, a das algemas.
O processo de escolha é realmente muito difícil. No meu caso, por exemplo, foram dois anos e meio até eu chegar ao tribunal, porque, nesse ínterim, houve mudanças, eleições na Seccional e no Conselho Federal. Todo o processo demorou muito. Só que praticamente todos já me conheciam, sabiam do meu trabalho. Sempre atuei na Justiça Federal e penso que isso ajudou no processo. Depois de tudo, a lista foi para o presidente da República, onde demorou mais ainda.
O ministro Aldir Passarinho costuma dizer que a indicação dele foi a mais demorada de todas, mas acho que a minha foi realmente a mais demorada que já houve. É realmente um processo muito penoso, difícil e demorado. Tudo isso sem falar na interferência do poder econômico e do poder político no processo de escolha. É uma série de coisas muito difíceis, que se equipara praticamente a um processo de concurso, só que bem mais complexo, porque, no concurso, você tem seu conhecimento e sua capacidade a seu favor. Ali, além do conhecimento e da capacidade, você precisa ter relações institucionais, relacionamentos e influências políticas.
Essa forma de escolha acaba afastando alguns nomes muito bons, que preferem não se submeter a toda essa exposição, ao desgaste dessas contingências.
Justiç@: Como a senhora vê as escolas de magistratura e qual sua função primordial na formação dos juízes? Em seu entender, o que é preciso mudar na estrutura existente?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Nossa escola, aqui, da Primeira Região, possui uma estrutura física excepcional. O desembargador federal Hilton Queiroz na diretoria da escola deu realmente um upgrade excepcional, que tenho certeza não sofrerá solução de continuidade na gestão do Desembargador Federal Moreira Alves. A escola cresceu e segue o caminho natural que deve seguir, qual seja, atuar na formação dos juízes, dando-lhes sustentação de matérias, de discussões, de aprimoramentos, enfim.
Tive oportunidade, nos Estados Unidos, de conhecer um programa chamado “educação continuada do Poder Judiciário”. Todo ano, pelo menos 15 dias por ano, todos os juízes, sejam de tribunais superiores, federais, sejam estaduais, todos eles são obrigados a fazer esse curso. Tive oportunidade de fazer um curso desses na Universidade da Geórgia em Athens, Atlanta, aproveitando um convênio que já existe há mais de 10 anos, entre a escola da magistratura do Tribunal de Justiça de Pernambuco e a Universidade da Geórgia.
Fui convidada por um desembargador do TJ de lá, e comigo foi o desembargador federal Luciano Amaral. Eles têm convênio com a AMB, e nós pagamos nossa passagem e estada, o que acabou ficando bem barato. Eles fazem lá um trabalho muito bem feito. Foram 15 dias numa universidade maravilhosa. Tivemos contato com todos os juízes e ministros. A forma como é feito o curso é interessantíssima, principalmente uma atualização sobre a jurisprudência, grandes discussões jurídicas, temas de grande relevância.
É uma forma de manter os juízes sempre envolvidos com as questões jurisprudenciais e legais, atualizados em todas as matérias, sabendo o que se passa por trás dos processos legislativos, coisa que nós aqui, apesar de estarmos tão próximos do Congresso Nacional, não sabemos. Não temos sequer um acompanhamento, nem mesmo das matérias que nos interessam diretamente, nem qualquer participação. É diferente de lá.
A tendência de nossa escola é melhorar cada vez mais depois do significativo impulso dado pelo desembargador federal Hilton Queiroz, talvez até pelo apoio que teve da presidência do tribunal. Sou uma entusiasta da escola, tenho a convicção de que ela é muito importante para todos nós, desembargadores federais, juízes, todos. Até porque vivemos dentro de uma bolha, da qual precisamos sair de vez em quando, até para ver o que está acontecendo lá fora. E a escola é para isso.
Justiç@: E em relação ao orçamento da escola? Acha que deveria ser um orçamento próprio, individualizado ou vinculado aos tribunais?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Sei que a nossa escola é vinculada ao orçamento do tribunal, não possui dotação própria. É um órgão do tribunal, diferentemente da escola do TST – Tribunal Superior do Trabalho, sobre a qual tenho muito conhecimento, que é excepcional, é uma instituição à parte.
Aqui na nossa, tenho certeza que não. O orçamento é vinculado ao tribunal.
Justiç@: E quanto aos cursos preparatórios de juízes, que passaram a ser obrigatórios para toda a magistratura? A escola não poderia oferecê-los?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: É verdade. Depois da Emenda Constitucional 45, os cursos de preparação passaram a ser obrigatórios, não só para formação dos juízes em si, mas também para as promoções. Nesse tópico, defendo que a promoção deve ficar vinculada aos cursos da escola, porque, a meu sentir, nem todos os juízes, é claro, têm possibilidade de fazer cursos lá fora.
Ademais, será válido afastar o juiz — eles já são poucos — de sua jurisdição? Penso, por isso, que a escola, mais do que nunca, deve preparar-se para oferecer esses cursos, até para não prejudicar os juízes na sua promoção. Exigir do juiz cursos de formação sem oferecê-los em nossa escola, não é justo com aqueles que não podem sair para fazê-los. Isso não é aceitável.
Discutimos isso na Corte, e eu argumentei que, primeiramente, temos de cuidar da Escola. Como se pode obrigar o juiz a fazer um curso que não oferecemos? E os juízes que não podem ir fazer um curso fora, como é que ficam? Vão ficar prejudicados?
Por tudo isso, entendo que o futuro da Escola depende, em grande parte, desse empenho, da atuação dos juízes da primeira instância, dos desembargadores federais, para que todos juntos possamos aprimorá-la e torná-la cada vez mais forte e atuante.
Justiç@: Tramita na Câmara dos Deputados PEC que aumenta para nove o número de tribunais regionais federais, como forma de descongestionar os trâmites processuais e remover o gargalo hoje existente na Justiça Federal da segunda instância. Em sua opinião, seria melhor aumentar o número de desembargadores federais ou criar mais TRFs?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Ah, como gosto dessa matéria! Penso que, na atual conjuntura, especialmente aqui na Primeira Região, o mais plausível, o mais correto, o mais razoável, seria ampliar o número de desembargadores federais. Nessa questão, particularmente, estamos hoje numa desvantagem enorme em relação aos outros tribunais federais. Temos o mesmo corpo de servidores que possuíamos quando foi instalado o tribunal, há 21 anos, mesmo com a ampliação para 27 desembargadores federais. Paralelo a isso, 14 estados da Federação estão sob nossa jurisdição direta, e também o Brasil inteiro, porque a primeira instância do DF é nacional. O tribunal praticamente passa a ser um tribunal nacional.
Em matéria tributária, por exemplo, grande número de ações são ajuizadas aqui, vindas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, porque dizem ser muito mais rápido, até porque as autoridades coatoras estão todas aqui. Tive ocasião de dizer ao nosso corregedor-geral, o ministro Francisco Falcão, quando aqui esteve, por ocasião dos mutirões, que o Conselho da Justiça Federal precisa olhar o tribunal de maneira diferenciada. Temos um contingente de juízes igual ao do Regional de São Paulo, da Terceira Região. Fiz esse estudo na gestão do desembargador federal Jirair Meguerian, que nomeou uma comissão para esse fim, composta por mim, pelo desembargador federal Souza Prudente e pelo juiz federal Moacir Ramos.
Decidimos ir, o juiz federal Moacir Ramos, então presidente da Ajufer e eu, falar com o ministro Cesar Asfor Rocha, para pedir a ele que desmembrasse o projeto inicial dos cinco regionais, por sabermos que os cinco juntos não avançariam. Pedimos também ao ministro Falcão o que não conseguimos na gestão do ministro Cesar Rocha, que desmembrasse aquele projeto, o projeto do nosso tribunal, de maneira a ampliá-lo para, no mínimo, 50 desembargadores federais. O Tribunal da Terceira Região, por exemplo, tem 47 desembargadores federais e uma estrutura, um corpo de servidores muito maior do que o nosso.
Não adianta vir aqui, chicotear o tribunal, fazer correições, dizer, como foi dito, que o nosso é o pior tribunal do país, sem que se exponha pelo menos o critério utilizado para chegar a essa conclusão — porque o número de processos não é; o trabalho, também tenho certeza de que não é, pois é incessante por parte dos desembargadores federais e servidores. Ora, todos sabemos que, hoje, a primeira região possui muito mais processos que a terceira região, que tem uma estrutura muito melhor, o que possibilita trabalhar bem. Eu mesma conheço desembargador federal de lá que tem 500 processos no acervo. Ou seja, é muito diferente do nosso.
O CJF acabou por aumentar o quadro para 30, em vez dos 50 pedidos inicialmente. Só que, em razão de pedidos similares da segunda, da quarta e da quinta regiões, o processo acabou retirado de pauta e a votação foi suspensa.
Defendo que é preciso pensar primeiro na questão da primeira região, por se tratar de uma situação de necessidade premente. Tenho afirmado também que a ampliação não vai obstar a instalação de novos tribunais, até porque a primeira região vai ser sempre a primeira região e vai ser sempre nacional. Se for o caso, pode-se até pensar, quando forem criados esses novos regionais, em tirar tantos desembargadores federais de cada tribunal para compô-los, isso não é problema. O que salta aos olhos é a necessidade de ampliar urgentemente o número de desembargadores federais do TRF da Primeira Região.
Justiç@: A virtualização dos processos é uma realidade sem volta no Judiciário brasileiro, com reconhecidos benefícios sobre o tempo geral de tramitação dos feitos. Que outras medidas e providências, além de suas dificuldades evidentes de implantação, a senhora apontaria como indispensáveis à extinção da morosidade, sem dúvida a principal queixa da sociedade em relação ao Poder Judiciário?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: A instituição do processo virtual realmente é algo inimaginável na estrutura tecnológica brasileira. Sabemos todos que há comarcas que atuam na função delegada de juizado federal que não têm sequer telefone. Nossa estrutura tecnológica ainda está muito aquém do necessário, do que seria desejável e preciso. Aqui mesmo, em nosso tribunal, temos enfrentado problemas nessa área. Instituímos o processo digitalizado, só que nos esquecemos de fazer o mais importante, trocar as máquinas. Ficou o mesmo sistema, o que até hoje nos causa muita dificuldade.
Por exemplo, para despachar 50 agravos, coisa que eu fazia muito rapidamente, hoje enfrento muita dificuldade para rolar esses documentos. Alguns somem no sistema. Estou cansada de reconsiderar decisões em que neguei seguimento a agravos por falta de peças, sendo que as peças estavam lá, simplesmente não deu para ver, por causa de problemas no sistema.
É possível que no futuro se venha realmente a ter essa agilidade, o que é ótimo. Mas não devemos nos esquecer de que a tramitação mais ágil do processo virtual, inclusive com peticionamento virtual, vai ensejar sobrecarga de trabalho do magistrado.
Costumo lembrar que tivemos, na história do país, os primeiros votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que eram no máximo duas páginas escritas com caneta tinteiro, com aquela caligrafia linda, um voto ou dois, no máximo, por mês.
Veio a máquina datilográfica e aí se passou a fazer dois votos. Chegou a máquina com corretivo, passou-se a fazer 10 votos. Aí veio o computador, e a gente passou a fazer mil votos. Quero dizer que, o que acumula mesmo, é o fato de que o juiz que antes soltava 10 sentenças, solta hoje 200, o que transforma a segunda instância num gargalo. Então, essa tecnologia tornou mais ágil o Judiciário? Inegavelmente ajudou. Só que, hoje, quando se fala em morosidade do Judiciário eu me arrepio.
Tenho certeza de que o Judiciário não é moroso, apenas atua de acordo com as disposições processuais. Ora, sabemos que existe um Código de Processo Civil e há um Código de Processo Penal que acabam por ensejar uma infinidade de recursos. É evidente que grande parte das dificuldades do magistrado, além da grande demanda, provém disso, do número exagerado de recursos, da existência de recursos protelatórios. Então se diz que o Judiciário é lento, mas não é.
Na Justiça Federal, então, lidamos com a irresponsabilidade dos entes públicos para piorar as coisas. Antes da Constituição de 1988, para chegar ao Judiciário era preciso esgotar as vias administrativas, e ainda havia o fato de que as pessoas tinham medo de vir até o Judiciário em busca de seu direito. Hoje, o jurisdicionado tem a porta livre, então ele aciona mesmo. Ninguém ignora que o nosso cliente maior é o ente público, que não cumpre o seu papel e sobrecarrega o Judiciário.
É uma injustiça atribuir a morosidade ao Judiciário. Todos os dias temos, principalmente nós aqui, na Justiça Federal, de enfrentar uma pletora de processos em razão de alterações em planos econômicos, em índices econômicos, mudanças na legislação, medidas provisórias, coisas assim... O Judiciário ainda é, não obstante algumas pesquisas feitas ultimamente, o único confiável dos três Poderes, em que o povo ainda acredita, ainda busca. O próprio número de demandas que defrontamos testemunha isso.
Tomemos o caso dos juizados especiais, que eu acho uma maravilha. Acho o magistrado dos juizados especiais um juiz completo, que vê nascer, crescer e morrer a ação ali mesmo. Vê a efetividade de sua decisão, coisa que não temos. Aqui é uma passagem, e só. Não sei o que vai acontecer lá na frente ao que eu decidir aqui. Penso que devemos incentivar mais os juizados especiais, que, em minha opinião, são a chance de resolver pelo menos um pouco da injustiça deste país.
Justiç@: A impunidade é apontada, praticamente por todos os segmentos da sociedade brasileira, como um dos nossos maiores males e um entrave à nossa vida democrática, com reflexos diretos sobre os indicadores de violência. Que sugestões e medidas a senhora apontaria para pelo menos reduzir esse grande mal?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Essa é outra grande injustiça que se faz ao Poder Judiciário. Sai lá naquela manchete, com letras enormes: “a polícia prende, o Judiciário solta”. Ora, não é isso. Na verdade, quem prendeu foi o juiz e quem mandou soltar foi o juiz. E por quê? Porque, muitas vezes, o procedimento foi equivocado. Às vezes a instrução do processo leva o juiz a decretar uma prisão, pela premência, pela necessidade, só que, no decorrer do processo vai-se ver que não existe isso, então é dever do juiz mandar soltar.
Tivemos agora o caso do presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, que ficou seis anos afastado, sem provas, o que levou o próprio Ministério Público a pedir o arquivamento da denúncia. O que se vê hoje é o Judiciário às voltas com essa pressão política, da opinião pública, da mídia, que causa muita confusão. Então o juiz, no afã de atuar, porque é seu dever, acaba fazendo. Depois, ele mesmo, juiz, verifica que tem de soltar.
Muitas vezes discuto com as pessoas sobre isso: não é a polícia quem prende; quem manda prender é o juiz, que é também quem manda soltar. Aí vem essa conversa da impunidade. Que impunidade é essa? Temos contra nós a própria legislação, que proíbe prender ou condenar alguém sem ter prova do crime, por mero indício.
Há também a afirmação de que há impunidade, de que só os ricos não vão para a cadeia. Isso não é verdade. O problema está na defesa. O rico tem os melhores advogados. Infelizmente, o juiz não tem como sair de sua cadeira e tomar o partido de alguém, não pode. Muitas vezes, os juízes ficam açodados ou então acuados, e acabam fazendo o que era necessário naquele momento, mas que, posteriormente, com um exame mais aprofundado, precisa ser revisto e corrigido.
Para mim, não existe essa alardeada impunidade. O que existe, muitas vezes, é a falta de uma investigação científica competente. Como é possível a polícia passar dois anos fazendo uma escuta e não conseguir provas robustas e cabais? É claro que a Polícia Federal e o Ministério Público são duas instituições importantíssimas nesse processo, mas que nunca podem nem devem atuar como juiz.
Justiç@: A senhora chegou ao TRF-1ª Região pela vaga do quinto constitucional destinada aos advogados. Qual a importância do exercício da advocacia na sua carreira de julgadora? Que mudanças e diferenças a senhora apontaria entre o exercício da advocacia e o múnus judicante?
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso: Fui advogada durante 25 anos, de balcão mesmo. Então, tive uma atividade muito próxima da judicatura, tive grandes amigos, inclusive, no Tribunal Federal de Recursos, do qual tenho imensa saudade. Era um tribunal muito bom, os ministros eram de uma simplicidade e coerência ímpares, e as sessões de julgamento eram verdadeiras aulas, maravilhosas. E eu tive ocasião de vivenciar tudo isso.
Logicamente, hoje na judicatura, digo apenas o seguinte: amo o que faço. Sou apaixonada pelo que faço, e é claro que fui apaixonada pela advocacia, mas tinha sempre o objetivo da magistratura. A bagagem que eu trouxe é importantíssima. Eu vivi o outro lado, senti como é o sofrimento do advogado, a angústia da parte. Você consegue separar até psicologicamente o certo do errado. O juiz de carreira também tem a capacidade de gerenciar isso.
Acredito que uma experiência maior, de cinco anos, por exemplo, para ser juiz federal, seria importante para trazer esse amadurecimento, essa maturidade psicológica que o julgador deve ter.
Penso que a bagagem, a experiência que hoje trago para a magistratura é, sobretudo, o envolvimento que tenho pela matéria, pelo direito, porque eu gosto muito da área, tanto que fui professora durante 14 anos na AEUDF.
E é com base nessa experiência que acredito que a advocacia precisa melhorar muito, muito mesmo. Os advogados precisam ter mais ponderação a fim de não levarem seu cliente a uma aventura jurídica, e com isso evitar contribuir com esse acúmulo de processos que assoberba e congestiona o Judiciário.
De sua vez, os entes públicos, como grandes clientes da Justiça que são, responsáveis pela maioria dos processos em tramitação, precisam agir com maior responsabilidade, de modo a também colaborar com o desembaraço da estrutura judiciária.
Estou certa de que, apesar das dificuldades e problemas que enfrenta, o Judiciário federal brasileiro é uma Justiça efetiva, concreta, que orgulha todos aqueles que nela trabalham e constitui garantia para aqueles que nela buscam seus direitos.
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Viriato Gaspar - Revista Justiç@
Fonte: Revista eletrônica da seção judiciária do Distrito Federal (http://www.jfdf.jus.br/revista_eletronica_justica/Marco11/Entrevista.html)