Entrevista com o Promotor de Justiça Davi Câmara
"A Lei Maria da Penha é vista como ação positiva do nosso Estado no escopo de modificar o comportamento machista de o homem brasileiro pensar que tem direito de propriedade sobre sua companheira e que pode agredi-la fisica, moral ou psicologicamente, todas as vezes que assim desejar. Para tanto, recrudesceu o rigor processual, impedindo a concessão dos benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo e impossibilitando de a vítima se retratar da representação em situação de lesão corporal.Uma das críticas a essa legislação é que a proteção da mulher não foi alcançada integralmente, pois a lei só pode ser aplicada quando a violência ocorre no âmbito doméstico, familiar e afetivo da vítima, portanto, se a mulher é agredida por um estranho, vizinho ou no trabalho, tais agressores estão sujeitos ao trâmite processual dos juizados especiais criminais, podendo ser beneficiados pela transação penal, retratação da representação, sursis processual, etc" (Davi Câmara)
AIDC - Fale um pouco sobre sua trajetória jurídica. Em que momento surgiu a vontade em ingressar no MP?
Cursei a Faculdade de Direito na Universidade Federal do Amazonas, no antigo prédio localizado na escadaria dos Remédios, colando grau em 1992. Logo após, fiz minha primeira pós-graduação com uma turma repleta de promotores de justiça e com poucos advogados. Os debates jurídicos eram intensos e passei a conhecer melhor as atribuições ministeriais através dos exemplos de ilustres membros: Drs. Públio Caio, Sérgio Medeiros, Carlos Lélio, Elvys de Paula, Suzete, Jussara Pordeus, dentre outros, e eles me instigaram a fazer o concurso para ingresso no MP no ano de 1995. Mas os grandes mentores e incentivadores que fizeram eu decidir pela carreira do MP foram, sem dúvida, Dr. Luiz Felipe Verçosa e Dra. Marlene Verçosa, Procurador de Justiça e Juíza de Direito. Ele convidava-me a acompanhá-lo até o seu escritório e lá discorria por horas sobre a relevância do trabalho do Ministério Público. Enquanto que ela sempre me ensinava da importância da materialização da justiça nos julgados das ações, sendo que para isso acontecer, as partes deviam atuar com lealdade e honestidade nos autos. Sou muito grato aos dois pelo promotor de justiça que sou hoje.
AIDC - Quais as Comarcas pelas quais já passou e quais os casos mais frequentes que pode citar?
Tomei posse no MP em fevereiro de 1996 e fui promovido para a capital em agosto de 2011, portanto, foram 15 anos, 5 meses e 22 dias exercendo as atividades ministeriais no interior do Estado, nos seguintes municípios, juntos aos nominados magistrados:
Fonte Boa – Dra. Etelvina Braga;
Jutaí – Dr. Joaquim Almeida;
Tefé – Dr. Taketomi e Dra. Jaci;
Coari – Dra. Maria Berenice;
Urucará – Dr. Bismarque Leite, Dr. Marcos Maciel e Dr. Onildo;
São Sebastião do Uatumã – Dr. Bismarque Leite;
Itapiranga – Dra. Patrícia Chacon;
Silves – Dr. Julião;
Carauari – Dr. Takeda;
Guajará – Dr. Carlos Zamith e Dr. Odílio;
Ipixuna – Dr. Carlos Zamith e Dr. Odílio;
Boca do Acre – Dra. Rosa Calderaro e Dr. Reyson;
Novo Airão – Dr. Anésio Pinheiro;
Iranduba – Dra. Lídia Frota, Dra. Luciana Nasser, Dr. Jean Carlos; Dr. Fábio Alfaia;
Caapiranga – Dra. Margareth;
Anori – Dr. Antônio Carlos Marinho;
Rio Preto da Eva – Dr. Roger e Dr. Cássio.
Justiça Itinerante do Interior – Dr. Luís Cláudio Chaves.
Portanto, foram 18 municípios e 25 magistrados, e de várias lembranças desse tempo, destaco a minha primeira viagem para a Comarca de Fonte Boa (1996), logo após minha posse no cargo, saindo de barco de linha (recreio) de Tefé, com uma bagagem cheia de livros, uma ansiedade sobre o que me aguardava e uma vontade de trabalhar muito e fazer a Justiça se concretizar naquele local. Durante o percurso, olhando as casas de palafitas ao longo do rio, com lamparinas e velas acesas, a garotada dentro das canoas esperando o banzeiro do barco chegar, as mulheres grávidas e seus inúmeros filhos a acenar, notando as inúmeras paradas do motor para entrega de correspondências e mantimentos aos ribeirinhos, foi que percebi que, mais que o Direito, com suas abundantes legislações, esse povo precisava era de Cidadania e a Justiça era apenas um dos expoentes que eu poderia proporcionar com meu mister.
Desde então, o significado de promotor de justiça se tornou para mim, não apenas um operador de direito munido de conhecimentos jurídicos, responsável por promover exclusivamente a ação penal pública incondicionada e outras atribuições lhe conferidas por lei, mas de um agente público do Estado com o sacerdócio de defender os interesses e direitos irrenunciáveis da sociedade e dos cidadãos.
AIDC – Quais os pontos positivos e as dificuldades de ser Promotor do interior do Estado?
O aspecto positivo é o da proximidade com os jurisdicionados e o de perceber que o homem do interior do Estado ainda nutre um grande respeito pelas autoridades constituídas. Nós somos promotores de justiça 24 horas por dia. Seja no fórum, no gabinete da Promotoria de Justiça, na mercearia, no hotel, na feira, no restaurante, na igreja, ou transitando na rua, as pessoas dos pequenos e médios municípios do interior nos veem como membros ministeriais e por isso nosso comportamento social deve ser reto, íntegro, pois serve como modelo para a comunidade.
A maior das dificuldades é a grande distância das Comarcas da Capital do Estado, cujo transporte por barco é bastante longo e, quando munidos de linhas aéreas, as passagens são caras e muitas com serviços apenas de pequenas aeronaves, o que acaba isolando o membro ministerial no município. Deste modo, muitas vezes, diante de graves situações ou de complexos problemas, o órgão do Ministério Público se sente só no combate aos crimes, às mazelas e aos “poderosos”locais.
AIDC - Fale um pouco sobre a Promotoria da Vara Maria da Penha. Quais são as dificuldades e os pontos positivos?
Quando assumi a titularidade da 73ª Promotoria de Justiça junto à Vara Maria da Penha da Capital fui surpreendido com um volume muito grande de processos com vistas ao MP (3.984), o que levou a um desdobramento de esforços de vários colegas promotores, assessores jurídicos, formando grupos de trabalhos com o intuito de normalizar essa demanda processual, fato que ocorreu no mês de setembro deste ano, com o apoio total da Administração Superior do Ministério Público. A Lei nº11.340/06, que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher, por ser relativamente nova no mundo jurídico e trazer novidades processuais, tais como o hibridismo de aspectos cíveis e criminais, as medidas protetivas de urgência e a inaplicabilidade de institutos consagrados na Lei 9.099/95, foi alvo de diversas interpretações jurídicas e contemplou variados entendimentos jurisprudenciais em todo o Brasil.
Apenas em fevereiro deste ano, com o julgamento de duas ações no STF (ADC 19 e ADI 4424) é que foram pacificadas as questões da inaplicabilidade dos institutos da Lei 9.099/95 (sursis processual, necessidade da representação da ofendida no caso de lesão corporal de natureza leve) e da natureza da ação penal ser pública incondicionada nas hipóteses de lesão corporal. Mas outros relevantes questionamentos ainda transitam nas esferas judiciais, tais como, a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência (cível ou penal), a possibilidade da conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direito nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a duração das mpus, etc.
A Lei Maria da Penha é vista como ação positiva do nosso Estado no escopo de modificar o comportamento machista de o homem brasileiro pensar que tem direito de propriedade sobre sua companheira e que pode agredi-la fisica, moral ou psicologicamente, todas as vezes que assim desejar. Para tanto, recrudesceu o rigor processual, impedindo a concessão dos benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo e impossibilitando de a vítima se retratar da representação em situação de lesão corporal. Uma das críticas a essa legislação é que a proteção da mulher não foi alcançada integralmente, pois a lei só pode ser aplicada quando a violência ocorre no âmbito doméstico, familiar e afetivo da vítima, portanto, se a mulher é agredida por um estranho, vizinho ou no trabalho, tais agressores estão sujeitos ao trâmite processual dos juizados especiais criminais, podendo ser beneficiados pela transação penal, retratação da representação, sursis processual, etc.
Ainda, há de se definir pacificamente na jurisprudência pátria o que se entende por violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero. Por exemplo, se uma mãe ou irmã ou companheira agridem a filha ou a irmã ou a outra companheira, respectivamente, estariam elas sujeitas aos rigores da Lei Maria da Penha, sendo essa agressão baseada no gênero? Por estarmos lidando diariamente com todos esses questionamentos e evolução dos julgados dos diversos órgãos julgadores dos estados brasileiros, torna-se emocionante o desafio da sustentação das teses jurídicas sobre esses temas. Nas reuniões nacionais dos promotores de justiça atuantes junto às varas da violência doméstica e familiar contra a mulher de todos os ministérios públicos dos estados, torna-se evidente que a sociedade brasileira anseia por uma atuação constante, firme, corajosa e dinâmica dos membros ministeriais na defesa da mulher ofendida e na garantia de seus direitos, resultando na punição rigorosa do homem-agressor.
A 73ª Promotoria de Justiça está instalada numa pequena sala do Fórum Azarias Menescal de Vasconcelos, na avenida Grande Circular, na Zona Leste, dividindo o espaço com a 45ª PJ e a 75ª PJ, estando, portanto, 3 promotores de justiça, 3 agentes técnicos jurídicos e 1 estagiária trabalhando em ritmo de “lan-house”. Essa falta de estrutura física dificulta a prestação de um bom atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar, bem como aos advogados e ao público, em geral, sendo esse problema minimizado pela excelente harmonia das relações de todos os envolvidos.
AIDC – No seu ponto de vista, quais as contribuições do Ministério Público Estadual para a sociedade amazonense?
Dentre muitas instituições brasileiras, o Ministério Público Brasileiro tem sido visto pela sociedade com respeito e credibilidade, decorrente da atuação impessoal, imparcial e apoiada nos mandamentos legais de seus órgãos, na defesa da ordem jurídica, da democracia e dos interesses indisponíveis dos cidadãos e da sociedade. Desde a promulgação da Constituição da República de 1988, o MP tem-se consagrado como o advogado da sociedade, sendo-lhe sempre atribuídos as mais diversas e importantes incumbências no resguardo desses direitos.
Nessa mesma ótica, nosso Ministério Público do Amazonas, nos últimos anos, através de seus membros, tem incessante e corajosamente agido, quando notada alguma ofensa aos valores constitucionais incrustados no Estado Democrático de Direito, sem bazófias, sem se apequenar ou amedrontar diante de poderosos, econômica ou politicamente, ou de quaisquer criminosos. Essa postura ministerial adotada por todos os seus membros, seja com atuação nas longínquas Comarcas de Envira, Boca do Acre, Ipixuna, etc., ou em Manaus, é a responsável pela confiabilidade depositada pela sociedade amazonense em nossa Instituição.
AIDC – Como a senhor avalia a atual Administração do Ministério Público do Amazonas
O Dr. Francisco Cruz, atual PGJ, reconduzido pelos votos da maioria da classe, respeitada essa manifestação pelo Governador do Estado, tem norteado sua administração com a aplicação dos princípios éticos e morais que sempre o acompanharam durante sua trajetória de membro ministerial, valorizando meritoriamente a antiguidade dos promotores de justiça nos seus votos como Presidente do Conselho Superior do MP nas remoções e promoções, bem como tem direcionado esforços para a contratação e valorização de servidores, indispensáveis aos promotores de justiça para a célere prestação de suas funções para a sociedade. Ainda tem se voltado a guarnecer os promotores de 1ª entrância e da capital com estrutura física condigna, abandonando a ideia da necessidade de o órgão ministerial ficar sujeito à concessão de um espaço dentro dos fóruns pela boa vontade dos membros do poder judiciário.
AIDC - Existem aspectos em que o Ministério Público deve melhorar? Se sim, em quais?
Acredito que nossa Instituição não deve se esquecer da imprescindibilidade da valoração intelectual de seus membros, oportunizando a todos oportunidades em participação de eventos locais e nacionais, bem como a realização de cursos de especialização e atualização, através do CEAF. Em um mundo globalizado e diante de uma união nunca antes vivenciada por todos os Ministérios Públicos Brasileiros (Estados, República, Trabalho), o intercâmbio de informações é extremamente necessário, pois além de aprimorar o desenvolvimento do conhecimento jurídico, facilita a adoção de medidas já experimentadas e bem sucedidas por colegas de outros Estados, levando à otimização da prestação das atribuições ministeriais para todos.
AIDC - Que mensagem deixa para os que pretendem ingressar na carreira do Ministério Público?
Para aqueles que sonham em servir à sociedade, agindo com impessoalidade, honestidade, imparcialidade e motivado a concretizar a justiça, o Ministério Público é a casa que os aguarda. Devem, entretanto, estar preparados para, eventualmente, serem perseguidos, ameaçados e odiados por aqueles que agem em desconformidade com o ordenamento jurídico, voltados ao mundo do crime.
E, algumas vezes, poderão até sofrer injustiças. Mas, se contaminados pelo espírito ministerial de nunca arrefecer durante a missão de promover a distribuição da justiça social, fiscalizando o fiel cumprimento das leis, defendendo os consagrados direitos constitucionais das pessoas e da sociedade, lutando em prol dos mais humildes, cada pequena vitória da justiça, cada singelo sorriso devolvido como gratidão, cada mínima paz social alcançada, servirão como bálsamos às desilusões padecidas e como fortificantes para as lutas vindouras, renovando-se continuamente a esperança de que o amanhã celebrará uma sociedade mais justa.
"Ser promotor de justiça é o sacerdócio de estar sempre servindo a sociedade, em busca da concretização do ideal da justiça humana", Davi Câmara