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Dois Surdos - Os religiosos e o movimento gay

DOIS SURDOS – OS RELIGIOSOS E O MOVIMENTO GAY

 

A decisão do STF, ao invés de ser comemorada e criticada, é apenas mais um round na luta irracional que se desenvolve entre religiosos e o movimento gay. O STF acertou na decisão, mas errou em sua abordagem. Ao invés de interpretar a Constituição, ousou reescrevê-la sem legitimidade para tanto. Mas que razões levaram a Corte Suprema a isso? A imperdoável incapacidade dos contendores de agir de forma intolerante, democrática e respeitosa. A terrível intenção, de ambos os lados, de forçar o outro a seguir seus postulados, em atentado contra a liberdade de escolha, opinião e crença.

Quem ler os relatos contidos em anais da Constituinte verá que incluir o casamento gay na Constituição de 1988 foi assunto derrotado nas votações. O STF mudar esse conceito e ignorar a decisão do constituinte originário é ativismo judicial da pior espécie, mas a Corte Suprema tem suas razões: os religiosos, ao invés de negociar uma solução, se negam a mexer na Constituição.

O erro da intolerância, o movimento gay também comete ao tentar impor um novo conceito de casamento ao invés da aceitação da união civil estável homoafetiva, e, mais ainda, ao defender um projeto de lei contra a homofobia que desrespeita a liberdade de opinião religiosa (PLC nº 122). Não há santos aqui, só pecadores. Em ambos os lados.

Erram os religiosos ao querer impedir a união civil homossexual, calcando-se em suas crenças, que, evidentemente, não podem ser impostas à força. Mas também erra o movimento gay em querer “enfiar goela abaixo” da sociedade seus postulados particulares. Vivemos em uma Era de homofobia e teofobia, uma época de grupos discutindo não a liberdade, mas quem terá o privilégio de exercer a tirania.

Negar o direito dos gays é tirania dos religiosos. De modo idêntico, impor sua opinião aos religiosos, ou calá-los, ou segregá-los nas igrejas, como se fossem guetos, é tirania do movimento gay. Nesse diálogo de surdos, o STF foi forçado a decidir em face da incompetência do Congresso, dos religiosos e do movimento gay, pela incapacidade de respeitar o direito alheio.

Anotemos os fatos. O STF existe para interpretar a Constituição, não para reescrevê-la. Onze pessoas, mesmo as mais sábias, não tem legitimidade para decidir em lugar dos representantes de 195 milhões de brasileiros. Os conceitos “redefinidos” pelo STF são uma violência contra a maioria da população1.

O RESUMO: apenas uma emenda à Constituição pode mudar esse tipo de entendimento.

O PROBLEMA: a maioria se recusa a discutir uma solução contemporizadora que respeite e englobe a todos.

O Supremo agiu bem em alertar sobre a incapacidade das partes de resolverem seus problemas no Congresso, mas errou em, ao invés de se limitar a assegurar direitos de casais discriminados, invadir o texto da Constituição para mudá-lo manu militari.

O STF não se limitou a garantir a extensão de direitos, mas quis reescrever a Constituição e modificar conceitos, invadindo atribuições do Poder Legislativo. Conceder aos casais homossexuais direito análogos aos decorrentes da união estável é uma coisa; outra coisa é mudar o conceito de termos consolidados, bem como inserir palavras na Constituição, o que pode parecer um detalhe aos olhos destreinados, mas é extremamente grave e sério em face do respeito devido a nossa Carta Magna. “Casamento” e união estável não são mera questão de semântica, mas de princípios. Nem por boas razões o STF pode ignorar os princípios da maioria da população e inovar sem respaldo constitucional.

Enfrentar discriminações é louvável, mas agir com virulência contra contra os conceitos tradicionais, e, portanto, contra o Congresso e a maioria da população, diminui a segurança jurídica jurídica diante da legislação. A tradição existe por algum motivo e não deve ser mudada pelo voto de um pequeno grupo, mas pela consulta ao grande público ou através de seus representantes, eleitos para isso.

O art. 1.726 do Código Civil diz que a união estável pode ser convertida em casamento mediante requerimento ao juiz. Ora, pelo que o STF decidiu, foi imposto, judicialmente, o “casamento gay”. Até os ativistas, os moderados, claro, consignam o cuidado de não se chamar de casamento a união civil. Os ativistas não moderados, por sua vez, queriam exatamente isso: “enfiar goela abaixo” da maioria uma redefinição do conceito de casamento. Não se pode, nem se deve, impedir que um casal homossexual viva junto e tenha direitos que um casal heterossexual tem, mas também não se pode impor um novo conceito que a maioria recusa.

Abriu-se, em uma decisão com intenção meritória, o precedente de o STF poder substituir totalmente o Congresso Nacional. Salvo expressa determinação da Constituição para que o faça, quando o congresso não legisla sobre um tema, isso significa que ele não quer fazê-lo, pois, se quisesse, o teria feito. Há um período de negociação, trâmites, protocolos. O Supremo não pode, simplesmente, legislar em seu lugar, tomar as rédeas do processo legislativo. Mas, que o Congresso e as maiorias façam sua mea culpa em não levar adiante a solução para esse assunto.

O STF deve proteger as minorias, mas não tem legitimidade para ir além da Constituição e profanar a vontade da maioria, conforme cristalizada na Carta Magna. O que houve está muito perto de criar, pelas mãos da Suprema Corte, uma “ditadura das minorias” ou uma “ditadura de juízes”.

O Supremo Tribunal Federal é o último intérprete da Constituição, e não o último a maculá-la. Ou talvez o primeiro, se não abdicar de ignorar que algumas coisas só os representantes eleitos podem fazer.

Precisamos caminhar contra a homofobia e o preconceito. E, também, lembrar que cresce em nosso meio uma nova modalidade de preconceito e discriminação: a teofobia, a “crençafobia” e a fobia contra a opinião diferente – o que já vimos, historicamente, que não leva a bons resultados.

O PLC nº 122/06, em sua mais nova emenda, quer deixar ao movimento gay o direito de usar a mídia para defender seus postulados, mas nega igual direito aos religiosos. Ou seja, hoje já se defende abertamente o desrespeito ao direito de opinião, de expressão e de liberdade religiosa. Isso é uma ditadura da minoria! É, simplesmente, inverter a mão do preconceito; é querer criar guetos para os religiosos católicos, protestantes, judeus e muçulmanos (e quase todas as outras religiões que ocupam o planeta) que consideram a homossexualidade um pecado. Sendo ou não pecado, as pessoas têm o direito de seguir suas religiões e expressar suas opiniões a respeito de suas crenças.

E se o STF entender que o direito de opinião e expressão não é bem assim? Isso já é preocupante, porque o precedente acaba de ser aberto. E se o STF quiser, assim como adentrou em atribuições do Congresso, adentrar naquilo que cada religião deve ou não professar?

O fato é que as melhores decisões podem carregar consigo o vírus das maiores truculências. Boa em reconhecer a necessidade de tirar do limbo os casais homossexuais, a decisão errou na medida. Quanto ao mérito da questão, os religiosos e ativistas moderados deveriam retomar o comando a fim de que a sociedade brasileira possa conviver em harmonia dentro de nosso diversidade.

 

NOTA:

  1. Basta ler o artigo Ulisses e o Canto das Sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um terceiro turno constituinte, de Lênio Luiz Strek, Vicente de Paulo Barreto e Rafael Tomaz de Oliveira, disponível no blog do autor.

 

DOUGLAS, William. Dois Surdos – Os religiosos e o movimento gay. Revista Jurídica Consulex, São Paulo: Consulex, 2011 (345): p. 46-47, 01/06/2011.