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Loucura e Deficiência Mental - Uma questão de capacidade

LOUCURA E DEFICIÊNCIA MENTAL – UMA QUESTÃO DE CAPACIDADE

 

Rodrigo da Cunha Pereira

 

1. INTRODUÇÃO

 

A loucura atravessa o tempo e o espaço. Como o inconsciente, ela é atemporal e aespacial. Ela nos tem sido escancarada pelas notícias constantes de crimes e atos que nos deixam perplexos. Foucault, em seu livro “História da Loucura”, dá-nos o registro da loucura e a evolução de seu tratamento desde a Idade Antiga, indicando-nos a relação de poder e o incômodo causado pelos “desarrazoados”, bem como a variação de seu conceito ao longo do tempo. Na Grécia, em Roma, na Idade Média, moderna e contemporânea, o ângulo pelo qual se via a loucura era variável de acordo com o poder, a crença, o interesse e o incômodo que ela causava.

 

No final do século XX a loucura começou a ser repensada. Rediscute-se os modelos institucionais instalados, a crise das instituições manicomiais, em que o louco é um excluído, um não cidadão. Apesar deste contexto, desta “nova ordem mundial”, a loucura continua sendo para o Direito um tema sombrio e pouca atenção tem merecido do jurista. Mas, afinal, o que o Direito tem a ver com a loucura? Não é a psiquiatria e as disciplinas psis que devem defini-la, e o Direito cuidar do respaldo e segurança deste conceito e das relações daí advindas?

 

A loucura interessa ao Direito, na medida em que ela é elemento determinante para a capacidade. Capacidade para praticar atos da vida civil. Atos que fazem fatos, que fazem contratos, que fazem negócios… que expressam vontade. Vontade dentro dos limites de uma razão. Razão razoável e com razoabilidade. E qual o limite desta razão? Os atos jurídicos são determinados essencialmente pela vontade e esta, por sua vez, por fatores de ordem psíquica. É neste sentido a afirmação de DEL VECCHIO:

 

“É ainda preciso conhecer a natureza dos processos psíquicos, da atividade do espírito, para compreender a origem do Direito… O Direito desenvolve-se inteiramente na ordem dos fatos psíquicos.”

 

Ao Direito interessa precisar os limites da razoabilidade, buscando auxílio das ciências psis para legislar, definir critérios e criar parâmetros que possam garantir a segurança das relações jurídicas baseados no justo e em princípios éticos.

 

Há uma tendência nas legislações contemporâneas de rever a classificação da incapacidade do louco. A Assembléia Geral da ONU, em 17/11/1991, lançou uma carta de princípios que redireciona e reavalia o instituto da capacidade. Seguindo esta tendência, os ordenamentos jurídicos contemporâneos começaram a repensar e reposicionar sobre o que é a loucura na medida em que o princípio da dignidade humana e as noções de responsabilidade passaram a ocupar o centro da “cena” jurídica.

 

Em todos os ordenamentos jurídicos, os loucos recebem tratamento diferenciado dos demais cidadãos da urbe. Sempre foi assim. O Direito, então, positivou normas para marcar estas diferenças e resguardar a segurança das relações da polis, legislando que uns têm capacidade para praticar atos da vida civil, e outros, dotados de menos razão, não podem, por si mesmos, fazê-los. A relatividade desse conceito fica clara quando Foucault nos relata, em sua obra “História da Loucura”, o tratamento diferenciado para a loucura em cada tempo, e sua evolução histórica .

 

No Brasil, como na maioria dos outros países, o louco recebe tratamento diferenciado dos demais cidadãos. Na esfera penal “não pratica crime”, (inimputável – art. 26 do Código Penal Brasileiro); ou sua pena pode ser reduzida de um a dois terços, se em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (Parágrafo único do artigo 26); no âmbito civil, é incapaz para prática de atos da vida civil, ou seja, não pode fazer negócios, casar, comprar,vender, segundo artigo 3º do código Civil Brasileiro de 2002 quando declarados judicialmente incapazes (interditados), passando a ser curatelado.

 

No Código Civil (1916) sob a infeliz influência do Código Criminal do Império (1830), a expressão utilizada para designar a incapacitação civil era “loucos de todo gênero”. CLOVIS BEVILAQUA, comentando aquele Código Civil Brasileiro, projeto de sua autoria, já criticava a expressão “loucos de todo gênero”:

 

“Esta é a expressão tradicional em nosso direito; mas não é a melhor. O projeto primitivo preferia a expressão alienados de qualquer espécie, porque há casos de incapacidade civil que se não poderiam, com acerto, capitular como de loucura. (…) Só será alienado, como diz Afrânio Peixoto, aquele cujo sofrimento o torne incompatível com o meio social.”

 

O Dr. NINA RODRIGUES, continua BEVILAQUA, queria uma rubrica menos estrita, que pudesse alcançar todos os casos de insanidade, de cuja soma o grupo das loucuras é apenas uma parcela. . CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA dizia que a questão da fixação do alcance da alienação mental quanto à incapacidade do paciente é árdua, tanto na ciência jurídica quanto na ciência médica, em razão da imensa diversidade que podem assumir os estados patológicos e à gradação variadíssima de sua extensão nas qualidades psíquicas do enfermo, desde a loucura declarada e franca, facilmente perceptível pelo aspecto furioso de seu portador, até os distúrbios menos pronunciados.

 

“… Quando o Código Civil faz referência à loucura, não se quer limitar àqueles casos de distúrbio mental que faz do enfermo um furioso, mas alude a toda espécie de desequilíbrio das funções cerebrais…”

 

Se verificarmos os códigos e as leis de outros Estados, constataremos que, como aqui, a preocupação em distinguir o louco, alienado, furiosus, ou qualquer outro nome que lhe seja dado, é saber se a vontade dele era livre ao tempo da ação que fez nascer responsabilidades para as partes envolvidas nos atos ou negócios jurídicos.

 

As críticas à expressão “loucos de todo gênero”, desde a publicação do Código Civil de 1916 até a sua revogação com o advento do Código Civil de 2002, foram muitas. Será que bastou a mudança desta expressão para intervir, atender às concepções mais modernas do Direito, em resposta ao debate instalado hoje sobre as novas concepções da loucura?

 

Com esta ou aquela expressão, o cerne da questão em torno da loucura e do louco está na objetividade da responsabilidade de seus atos. Em outras palavras, o limite de culpa para uma conceituação de ato ilícito, tanto na esfera penal quanto civil. Foi neste sentido que o imortal CLOVIS BEVILAQUA quis inserir no Código Civil de 1916 estas noções:

 

“No projeto primitivo, o ato ilícito aparecia somente como causa geradora das obrigações no livro respectivo. A comissão revisora destacou-o, porém, na parte geral sem atender a que lhe faltava para isso a necessária amplitude conceitual, e alterando, assim, o sistema do projeto. Alteração mais profunda proveio da emenda do senado, que introduziu no conceito de ato ilícito a menção culpa, estranha ao projeto primitivo e que a câmara não julgara necessário acrescentar ao dispositivo.”

 

Entretanto, não foi compreendido e sua antevisão não foi aceita. Hoje vigora em nossa legislação, no aspecto da responsabilidade civil, em face da perturbadora noção de culpa, dois critérios: um objetivo e outro subjetivo. O critério objetivo atende aos atos do homem médio, comum, “normal”. O critério subjetivo responde aos outros, ou seja, àqueles que atendem ao homem de acordo com as suas condições personalíssimas, como idade, sexo, cultura, alienação (menor, índio, louco).

 

Desde a publicação do Código Civil Brasileiro de 1916, muita coisa mudou e o conhecimento científico fez grandes avanços. A psiquiatria e a psicanálise evoluíram e firmaram conceitos mais claros e esclarecedores, embora não estejam prontos e acabados. Em 1939, um congresso internacional, realizado no Canadá, da Associação Henri Capitant, parece ter confirmado a antevisão de CLOVIS BEVILAQUA quando quis inserir no código de 1916 uma visão mais abrangente da culpa. Eis a conclusão deste congresso:

 

Em nenhuma parte o legislador rompeu definitivamente com o conceito de culpa; no entanto, a noção de culpa sofreu vários abrandamentos; a noção de culpa passou a se confundir com a própria noção de ilícito; confunde-se a culpa com o ato ilícito.

 

O Brasil, tendo adotado o critério objetivo de culpa, tanto no código civil de 1916 como no código de 2002, adotou também, consequentemente, um conceito quase onipresente da normalidade, e com isto não faz nenhuma descrição analítica do que é um homem normal, o que é normalidade psíquica. Entretanto, a ideia de culpa, responsabilidade, vontade… está intimamente ligada à ideia de normalidade e loucura. Em outras palavras e repetindo DEL VECCHIO, “o direito desenvolve-se inteiramente na ordem dos fatos psíquicos”.

 

O Direito não pode fechar os olhos para a evolução do conhecimento psi que vem elucidando fatos e comportamentos; não pode deixar de ver as consequências disto, refletidas nas discussões das Assembleias da ONU, adiante mencionadas; não pode deixar de prestar atenção em casos de loucura como a do filósofo LOUIS ALTHUSSER e do Juiz da Corte de Apelação de Dresden, Alemanha, DANIEL SCHREBER. Como filósofo e jurista, respectivamente, eles nos falam da loucura, de dentro dela, e remetem ao jurista questões que nos vêm da razão e da desrazão, divisão incessante, mas sempre modificada.

 

2. QUEM É NORMAL?

 

A história sempre colocou os loucos de um lado, em contraposição à razão. Esta fronteira entre o normal e o anormal deve ser questionada, mesmo porque, ela tem variado ao longo do tempo. A insensatez, a feitiçaria, a paixão desesperada… eram loucura. Loucura que não tinha remédio, apenas a misericórdia de Deus. O que se fez e se faz até hoje no campo jurídico é a demarcação dos limites da razão para que o Estado possa dizer quem pode e quem não pode praticar atos da vida civil.

 

MACHADO DE ASSIS (1839/1908) tinha uma preocupação constante com esta questão. Publicou várias obras, em que as personagens se desviam de um padrão de conduta tido como normal (Quincas Borba/1891 e Memórias Póstumas de Brás Cubas/1881, p. ex.). Especialmente em seu conto “O Alienista”, o desenvolvimento do tema é exatamente a procura, pela personagem central, Simão Bacamarte, da norma delineadora da sanidade e da insanidade mental. Mas o trágico é o final, quando aquele que dizia ter a razão tem sua posição invertida. Entretanto, parecia saber dizer a razão:

 

“Suponho o espírito humano uma vasta concha. O meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e insânia”.

 

Será mesmo possível demarcar os limites da razão? Em nossa vida, este limite é demarcável? O Direito precisa desta delineação para marcar os limites da culpa, da responsabilidade, do ilícito, do dolo, da vontade…

 

A seguir, analisaremos dois casos clássicos da psiquiatria e conhecidos na literatura, que ilustram bem esses questionamentos, ou pelo menos incita-nos à reflexão sobre o limite da razão e desrazão.

 

3. O CASO DO JUIZ SCHREBER

 

DANIEL PAUL SCHREBER nasceu em 1842 em Leipzig, Alemanha, de uma família de burgueses protestantes, cultos e ricos. Seus antepassados eram conhecidos pelas obras publicadas em Direito, Economia, etc. A família era grande, tradicional e de rígida moralidade. Quando tinha 19 anos, morreu seu pai. Ele decide estudar Direito para manter a tradição da família. Em 1878, casa-se com uma mulher quinze anos mais jovem. Sua carreira, como jurista e funcionário do Ministério da Justiça do Reino da Saxônia, andava muito bem. Sucessivas promoções: escrivão-adjunto, auditor da Corte de Apelação, assessor do Tribunal, conselheiro da Corte de Apelação, vice-presidente do Tribunal Regional de Chemmit, em 1884. Quis voar mais alto e, em outubro deste mesmo ano concorreu às eleições parlamentares pelo Partido Nacional Liberal. Não suportou a derrota. Foi internado em 8 de dezembro de 1884 em uma clínica para doenças nervosas em Leipzig, com manifestações delirantes e duas tentativas de suicídio. Foi sua primeira internação, mas há registros de crises de hipocondria anteriores a este fato. Ficou seis meses internado, até junho de 1885.

 

Em janeiro de 1886, considerando-se totalmente curado, reassumiu suas atividades profissionais como juiz-presidente do Tribunal de Leipzig. Frustrado por não ter tido filhos, acabou adotando uma menina. Sua vida seguia normal. Mais evolução e ascensão profissional: nomeação para presidente do Tribunal Regional de Freiberg (1889) e duas eleições internas para membro do Colegiado Distrital de Freiberg.

 

Em junho de 1893, o ministro da Justiça da Saxônia visitou-o, pessoalmente, para convidá-lo, ou melhor, nomeá-lo para o cargo de Senatsprasidente (juiz-presidente da Corte de Apelação) na cidade de Dresden. Era um cargo muito elevado para seus, apenas, 51 anos, e era determinação direta do Rei, sendo, além disso, um cargo que não podia ser solicitado e nem recusado, sob pena de delito de lesa-majestade. Certamente, chegara a este posto por puro merecimento e reconhecimento de sua competência. Mas, entre o convite e a posse, devido aos esforços e talvez ao medo de não atender bem às exigências do novo posto, ele entrou em colapso mental, com primeiros sintomas de insônia, angústia intensa, hipersensibilidade a ruídos. Tenta fazer um tratamento em casa, mas o seu estado se agrava. É então, internado, em 23 de novembro de 1893, mas, desta vez, fica nove anos com diagnóstico de “dementia paranóides”. Em 1894 é posto sob curatela provisória.

 

Em 1900, ainda hospitalizado, escreve “Memória de um doente de nervos”, onde relata seus delírios, experiências e impressões como um interno num hospício. Aí ele acreditava estar em permanente “conexão nervosa” com Deus e todas as suas instâncias intermediárias: raios, almas, vozes. Acreditava ser a mulher de Deus e que seria fecundado por Ele, e geraria uma nova humanidade.

 

O juiz-presidente SCHREBER negava a condição de doente mental, mas sabia perfeitamente que sua vida carregava a marca da loucura. Doente de nervos, sim, mas não uma pessoa que sofre de turvação da razão. Minha mente é tão clara quanto a de qualquer outra pessoa.

 

Schreber, em 1899, ainda internado, e já sob curatela provisória, começou a se interessar e a denunciar sua situação de incapaz. Ele mesmo inicia um processo para recuperar sua capacidade civil. Na sequência, o Tribunal, além de não lhe conceder sentença favorável, transformou sua interdição provisória em definitiva, da qual ele próprio recorre. Em julho de 1902, a Corte de Apelação, em resposta ao recurso, cancela a interdição, devolvendo-lhe a capacidade civil plena. Neste mesmo ano, ele termina de escrever suas memórias.

 

A longa, densa e bem-fundamentada sentença do Tribunal de Apelação traz elementos importantes para a reflexão do jurista em relação à tradicional ideia da incapacidade dos loucos de todo gênero. Ela realça, por exemplo, do laudo pericial: o elemento mais importante para a apreciação da capacidade de agir do paciente consiste no fato de que tudo que se apresenta a uma observação objetiva, como alucinação e ideia delirante, é para ele verdade inabalável e legítimo motivo de ação.

 

A parte final da sentença e sua fundamentação, com extraordinária clareza, traz-nos importantes elementos para reflexões sobre capacidade e loucura. Embora tenha sido prolatada em julho de 1902, permanece de impressionante atualidade. Vejamos:

 

“Que o queixoso seja doente mental é algo que está fora de dúvida, também para a Corte de Apelação. Mas não se pretenderá discutir com o queixoso sobre a presença da doença mental identificada como paranoia. Falta-lhe, justamente, compreensão sobre o caráter mórbido das inspirações e das ideias que o movem. O que se apresenta à observação objetiva como alucinação e delírio é para ele certeza inabalável. Até hoje, ele conserva inamovível a convicção de que Deus se revela diretamente a ele e não cessa de realizar milagres em sua pessoa. A convicção, como ele próprio afirma, se ergue altíssima, acima de toda e qualquer ciência ou compreensão humana. Mas a constatação de que o queixoso se encontra em um estado de perturbação mental de natureza patológica não é suficiente para a interdição. (…) Nem toda anomalia mental leva necessariamente à negação da capacidade civil(…). O juiz, encarregado da interdição, deverá ter que levar em conta o dado da experiência de que a influência das ideias delirantes que dominam o doente de paranoia não costuma se manifestar de modo uniforme em todos os setores da vida civil. (…) Como já se demonstrou, a presença da paranoia não é incompatível com a conservação integral da capacidade de administrar os próprios negócios.

 

(…)

 

Essas chamadas vociferações, que ocorrem de modo automático e compulsivo, contra à vontade do doente, nada têm a ver com a questão da interdição. Eventualmente, se a tranquilidade noturna foi perturbada por elas, podem requerer uma intervenção policial (grifamos), mas não podem servir como justificativa para a interdição, mesmo porque o meio escolhido não teria o menor resultado e permaneceria ineficaz. (…) Mas o Direito e a ordem jurídica só podem considerar esta possibilidade no momento em que ela se transforma em um perigo real (…) Ele, tal como uma mulher, costuma enfeitar seu peito, que no seu delírio está se transformando num busto feminino. Naturalmente, se ele fosse inteiramente normal, do ponto de vista mental, jamais gastaria dinheiro com essas coisas tolas (pequenos adereços femininos) (…) Não há a menor dúvida de que o queixoso, quanto à sua capacidade intelectual, está inteiramente à altura de administrar o seu patrimônio e o de sua esposa (…) Assim sendo, a Corte de Apelação chegou à convicção de que o queixoso, em todos os setores vitais aqui considerados – e os mais importantes são aqueles em que a lei prevê uma regulamentação específica -, está à altura das exigências da vida. Em todo caso, não se dispõe de nenhuma evidência, nem se pode considerar como certo o fato de que suas ideias delirantes o tornam incapaz para administrar seus negócios. Isto leva a considerar o recurso por ele apresentado e a anular a medida legal de interdição que pesava sobre o queixoso, sem que seja necessário examinar as provas testemunhais mais recentes, acrescentadas por ele (art. 672 do Código de Processo Civil)” (Desden, 26 de julho de 1902)

 

Após publicar o seu livro (“Memórias…”), ele dá mostras de grande vitalidade. Tenta o reingresso no Ministério da Justiça, mas não consegue. Quando perguntavam sobre a doença, dizia que vozes nunca o deixaram, mas agora se apresentavam apenas como um zumbido. Cuidou do inventário de sua mãe, que falecera em 1907. Após a morte da esposa, é internado, pela terceira e última vez, com crises de delírio. Em abril de 1911 faleceu, aos 69 anos de idade.

 

Com a publicação de suas memórias, o Dr. SCHREBER tornou-se o “louco” mais famoso da história da psiquiatria e também da psicanálise. Embora Freud não o tenha conhecido pessoalmente, tomou-o como objeto de estudo, já que ele mesmo havia, em seu livro, prenunciado isto. Deste então, ele vem sendo estudado pela psicanálise, sob os diversos ângulos e aspectos. Várias obras foram publicadas sobre o caso, especialmente na Inglaterra, França, Itália, Argentina. LACAN revalorizou o texto de SCHREBER com uma nova interpretação para a sua loucura.

 

Segundo FREUD, a decisão judicial que devolveu ao Dr. Schreber a liberdade, resume a essência de seu sistema delirante em poucas frases: “acreditava que tinha a missão de redimir o mundo e restituir-lhe o estado perdido de beatitude. Isso, entretanto, só poderia realizar se primeiro se transformasse de homem em mulher”.

 

Psicose, paranoia, vitória da loucura sobre a sexualidade, homossexualidade… Interpretações psicanalíticas à parte, pois não é aqui o lugar de fazê-lo. Mesmo porque, pessoas muito mais autorizadas já o fizeram. Interessa-nos, deste caso, trazer uma reflexão para o jurista sobre o limite da razão, ou seja, da capacidade civil, autorizada por uma razão que separa e distingue um outro lado, o dos desarrazoados. O presente caso aponta-nos que estes limites nem sempre são muito bem-definidos. Às vezes um “delirante” (paranóico, psicótico…) não está impedido de gerir seus próprios negócios, ou pelo menos conduzir-se, por si mesmo, em seus atos da vida civil. Pelo menos, foi este o entendimento do competente e reconhecido Tribunal alemão de Dresden, no início deste século.

 

4. O CASO DO FILÓSOFO ALTHUSSER

 

LOUIS ALTHUSSER, de pais franceses, nasceu em 1918, na Argélia, mas viveu a maior parte de sua vida na França. Teve uma infância pobre e sempre se destacou na escola pela sua inteligência e dedicação aos livros. Em 1945, passou a ser professor de filosofia e secretário da Escola Normal Superior em Paris, onde permaneceu por mais de trinta anos. Publicou vários livros e destacou-se como pensador marxista. Entre seus livros, mencione-se: “Por Marx” e “Ler O Capital” (1965); “Lenin e a Filosofia” (1968); “Resposta a John Lewis” (1972); “Elementos de Autocrítica” (1973); “Posições” (1976). Morreu em 1990, em uma clínica psiquiátrica francesa, aos 72 anos de idade, de parada cardíaca, e teve várias internações para tratamento antidepressivo.

 

Após a sua morte, foi publicado seu livro de memórias, autobiográfico, sob o título “O Futuro Dura Muito Tempo”. Como o jurista alemão, Dr. SCHREBER, suas memórias foram escritas em clínicas psiquiátricas ou nos intervalos entre uma internação e outra. Além do valor literário, a obra é um documento excepcional, que remete o jurista a pensar e repensar a questão da capacidade civil e da inimputabilidade.

 

ALTHUSSER, desde jovem, sofria de psicose maníaco-depressiva. Passou pelo divã de psicanalistas por muitos anos e desvendou mistérios, traumas e fobias que atordoavam sua alma e marcaram sua vida. Foi militante do Partido Comunista Francês, apesar de, ao final, adotar posições divergentes. Era conhecido, reconhecido e relacionado com a intelectualidade francesa e estrangeira de sua época. Casou-se com HÉLÈNE, socióloga comunista, oito anos mais velha que ele. Foi com ela, aos 29 anos de idade, que teve sua primeira experiência sexual, e com quem permaneceu casado muitos anos, apesar de ter mantido relações extraconjugais.

 

Em 1980, aos 62 anos, estrangulou sua esposa Hélène, enquanto a massageava. Ele foi internado em uma clínica psiquiátrica, só reaparecendo no noticiário, em 1990, com a divulgação de sua morte. Foi neste intervalo que escreveu suas reflexões sobre a loucura, do ato de matar, da angústia da morte, da posição da lei e do Direito em relação à sua impronúncia, com a qual preferiria não ter sido agraciado. É o próprio ALTHUSSER quem escreve:

 

“Este procedimento (de impronúncia) possui vantagens evidentes: protege o acusado, julgado não responsável por seus atos. Mas também dissimula perigosos inconvenientes, que são menos conhecidos. Por certo, a experiência de tão longa provação, como eu me flagro compreendendo minhas amigas! Quando falo da provação, falo não só do que vivi durante minha internação, mas do que vivo desde então, e também, percebo muito bem, do que estou condenado a viver até o termo de meus dias se eu não intervier pessoal e publicamente para fazer com que meu próprio testemunho seja ouvido. Tantas pessoas, com as melhores ou piores intenções, assumiram até aqui o risco de falar ou de se calar em meu lugar! O destino da impronúncia é, na realidade, a pedra sepulcral do silêncio.”

 

LOUIS ALTHUSSER faz uma análise lúcida, lógica e bem-elaborada da situação do acusado considerado louco. Embora não fosse jurista, ele tem conhecimento dos procedimentos lógico-jurídicos, administrativos e judiciários e faz a comparação da situação do julgamento do criminoso dito “normal” e o que cometeu o ato em estado de demência:

“… O criminoso reconhecido como tal recebe uma pena de prisão definida com a qual 'supõe-se' que ele paga sua dívida à sociedade e, portanto, 'lava-se' de seu crime. O estado de não responsabilidade jurídico-legal, em contrapartida, atalha o procedimento de julgamento público e contraditório perante o Tribunal do Júri. Destina prévia e diretamente o assassino à internação num hospital psiquiátrico. O criminoso é, então, ele também, 'posto a salvo de fazer dano' à sociedade, mas por tempo indeterminado. (…) Quando o internam, é evidentemente sem limite de tempo previsível, conquanto se saiba ou se devesse saber que em princípio todo estado agudo é transitório. (…) Ora, para a opinião pública, que certa imprensa cultiva sem jamais distinguir, a 'loucura' dos estados agudos mais passageiros da 'doença mental', que é um destino, o louco é considerado, logo de saída, um doente mental, e quem diz doente mental compreende evidentemente doente para o resto da vida e, por conseguinte, internável e internado para o resto da vida: 'LEBENSTOD', como disse tão bem a imprensa alemã. (…) Torna-se lentamente uma espécie de morto vivo, ou melhor, nem morto nem vivo, não podendo dar sinal de vida… expressar-se publicamente do lado de fora, e figurando de fato, arrisco o termo, na rubrica dos sinistros saldos de todas as guerras e de todas as catástrofes do mundo: o saldo dos desaparecidos (…). Mesmo libertado após dois anos de internação psiquiátrica, sou, para uma opinião que conhece meu nome, um desaparecido. Nem morto nem vivo, não ainda enterrado mas 'sem obra' – a magnífica expressão de Foucault para designar a loucura: desaparecido. (…) E se ocorre do 'louco' internado reaparecer à vista de todos, mesmo com o aval dos médicos competentes… Será possível que ele, 'louco', tenha se tornado 'normal'? Mas, se é o caso, então já não o era no momento do crime? O que será que ele vai fazer? Reincidir? (…) Pois foi sob a pedra sepulcral da impronúncia, do silêncio e da morte pública que fui obrigado a sobreviver e aprender a viver(…) Eis alguns efeitos nefastos da impronúncia e eis por que resolvi me explicar publicamente sobre o drama que vivi.”

 

A leitura destas memórias de ALTHUSSER dá ao jurista muito o que pensar, ou melhor, a repensar. Como é possível tamanha lucidez e sensatez em uma pessoa publicamente considerada “louca”? Como é possível a razão deslizar para a loucura e esta atravessar a razão? Embora ele se refira especificamente à figura da impronúncia, afeta o Direito Penal, a questão maior que ele nos traz é mesmo a da capacidade e incapacidade da pessoa para os atos da vida civil, da vida em geral. Ele põe em questionamento, além dos instrumentos (poder) do Direito de dizer a impronúncia (incapacidade), os malefícios que isto traz ao cidadão, como sendo “morte em vida”, um non lieu.

 

O psicanalista mineiro CÉLIO GARCIA, em seu texto “O Sujeito Fora de Si”, faz referência e comenta esta obra de LOUIS ALTHUSSER, apontando-a como um importante testemunho sobre a loucura.

 

“Este livro levanta uma questão a ser levada em conta tanto pela Filosofia Analítica, Psiquiatria Biológica, Razão Biologicista, e quejandas, sem esquecer a Psicanálise. Enfim, todas as teorias que se propõem dizer o que é a razão e o 'fora de si'. Este livro convoca igualmente a reflexão do jurista, pois que ALTHUSSER a ele se dirige mais uma vez. (…) Em seu princípio, a função jurídica tem como efeito colocar a uma certa distância o poder suposto absoluto da ciência. O questionamento jurídico diz respeito à entrada do sujeito no universo simbólico. Cabe, portanto, uma reflexão sobre as elaborações jurídicas ao levarem em conta a subjetividade. O jurista assume a tarefa de enfrentar este tipo de problema interrogando-o na sua complexidade, sem evitar o caráter perigoso e impossível de algumas questões. O jurista se envolve, tanto quanto o psicanalista em assegurar espaço para incerteza estrutural documentada na pergunta: Que será? pergunta que ele se encarrega de levar do nível individual ao macrossocial. Trata-se de formular o lugar do impossível de acontecer, do impensável, sem nos limitarmos a repetir o que a ciência já nos propõe com sua performance técnico-científica. Foram os juristas, e com eles as Escolas de Direito, que precederam o saber 'psi', assim como a tentativa de transmissão de um saber sobre o tema. Tarefa nada fácil, pois trata-se de produzir efeitos ao nível do próprio direito constituído. Longe de serem os teólogos da ciência, os juristas são intérpretes: eles sabem que a ideia da natureza é uma ficção. O Direito, assim, como a Psicanálise, aborda questões que nos vem da loucura, da desrazão.”

 

Complementando o raciocínio de GARCIA, fica também a pergunta de OLIVEIRA CORPET e YANN MOULIER BOUTANG, apresentando o mencionado livro de LOUIS ALTHUSSER, a que o Direito não pode fechar os olhos: “Como a história de uma vida pode deslizar assim para a loucura, e seu narrador ser a esse ponto consciente disto”?

 

5. ESTRUTURAS DA PERSONALIDADE

Embora não interesse diretamente ao campo jurídico, faz-se necessário mencionar, ainda que sucintamente, o entendimento atual da Psicanálise sobre as estruturas da personalidade, para que possamos entender a dimensão e abrangência que a expressão “loucos de todo gênero” utilizada pelo código civil de 1916, depois transformada pelo código civil de 2002 em “deficiência mental”.

 

Quando da promulgação do nosso Código Civil (1916), a psiquiatria caracterizava-se por uma abordagem basicamente fenomenológica e apenas descrevia sintomas. Com a evolução da Psicologia e o desenvolvimento da Psicanálise, a abordagem psi tomou outro rumo.

 

Com a Psicanálise, FREUD veio explicar como os sintomas aparecem na vida adulta, concentrando seus estudos principalmente na etiologia das neuroses, e no desenvolvimento da libido, a partir do Complexo de Édipo (como marco referencial). Podemos afirmar, de acordo com a teoria psicanalítica, que a personalidade humana tem três estruturas: neurótica, psicótica e perversa. Elas são formadas pela entrada, passagem e dissolução do Complexo de Édipo, ou seja, a partir do momento em que se instala a “Lei-do-Pai” (nom du père), lei básica, fundamental, que possibilita ao homem a passagem da natureza para a cultura. A diferença entre estas estruturas está referenciada no conceito de castração, recalque (Verdrangung), recusa (Verleugnung) e de forclusão ou foraclusão (Verwerfung). Acrescente-se que a estrutura dos neuróticos, segundo Lacan, subdivide-se em histéricos e obsessivos. Genericamente, pode-se dizer que a ideia destas estruturas, estudadas por FREUD, é a instalação de uma oposição a ROUSSEAU, que acreditava que todos os homens nascem bons e a sociedade os corrompe. Aqui, é ao contrário: todos os homens são maus, isto é, nascem puro instinto e pulsão, e a civilidade vai tornando-os sociáveis, na medida em que vão sendo marcados pelas leis (no sentido psicanalítico). Para FREUD e LACAN, a formação do sujeito se faz em uma destas três estruturas em relação à lei (nom du père). Assim, podemos dizer, por exemplo, que o psicótico forclui a lei (falta o significante paterno, não há simbólico, rejeita-se a realidade e surge o delírio). O perverso recusa a lei e se defende pela divisão do ego. No neurótico ocorre uma divisão do aparelho psíquico e cria-se a fantasia – a sua realidade psíquica –, tal como encontramos nos histéricos e obsessivos, a partir do recalque. Este recalcamento (Verdrangung) é um processo psíquico universal e está na origem da constituição do indivíduo e do inconsciente, e é somente a partir dele que o ser humano se constitui como sujeito. O recalcamento é um mecanismo básico utilizado pelas pessoas e pelos neuróticos (normais?).

 

Destas estruturas, a mais alcançável pelo método terapêutico é a neurótica. É certo que existe uma gradação de neuroses, mas é ela, a estrutura neurótica, que está presente e que constitui a maioria dos cidadãos. Uma sociedade dita “normal” é sempre neurótica, ou seja, a “normalidade” que tanto buscamos, possui de qualquer forma um certo grau de neurose. Assim, os neuróticos são os normais de uma sociedade. É claro que estou aqui fazendo uma grande simplificação da complexa obra de FREUD. Arrisco-me a dizer, entretanto, que a loucura está nas estruturas perversas e psicóticas.

 

Há várias formas e gêneros de loucura, mas qualquer que seja, estará sempre dentro destas três estruturas ou, para ser mais exato, dentro de duas estruturas, dependendo do grau (grau de recusa e forclusão) ela se mantém contida. Nos neuróticos, recalcada. Seguindo, o raciocínio psicanalítico, os loucos seriam sempre os psicóticos ou perversos e os “normais” os neuróticos. Talvez fosse melhor dizer “loucos em potencial”, pois nem sempre esta loucura (estrutura perversa ou psicótica) inviabiliza ou prejudica a ordem social. E é exatamente neste ponto que interessa ao Direito saber sobre a loucura, modernizando conceitos para possibilitar-nos pensar a capacidade e a incapacidade civil (sem esquecermos que aí, intrinsicamente, está a noção de periculosidade). Torna-se mais evidente esta necessidade, se tomarmos os exemplos de “loucos” furiosos. Além do filósofo ALTHUSSER e do Juiz SCHREBER, há entre nós o destacado jurista Teixeira de Freitas, um dos maiores desta terra, que trouxe grande contribuição ao Direito brasileiro, mas, em um momento de sua vida, teve a sua razão atravessada pela loucura. Entretanto, isto não invalida sua obra. Certamente a estrutura da personalidade deste grande jurisconsulto era psicótica, como a de tantas outras grandes personalidades de nosso e de outros tempos, inclusive de governantes e dirigentes de Estado. Esta loucura, mesmo se às vezes potencializada, ou descontrolada, em alguns momentos, não invalida, anula ou incapacita os atos desses “loucos”, ou mesmo os desresponsabiliza. É isto que ALTHUSSER, SCHREBER e TEIXEIRA DE FREITAS vêm nos dizer: o Direito precisa repensar a sua concepção de capacidade e incapacidade para os atos da vida civil.

 

6. A VONTADE DO LOUCO

A tendência, ou pelo menos a inquietação com a questão da incapacidade do louco parece ser uma preocupação em todo Ocidente. A Assembléia Geral da ONU, reunida em 17 de novembro de 1991, aprovou o documento “A Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e Melhoria de Assistência à Saúde Mental”, que reflete esta tendência e é fruto de uma discussão e trabalho instalados desde 1989.

 

Esta discussão advém da experiência e história, em quase todo o mundo ocidental, dos sistemas e resultados dos hospitais psiquiátricos, hoje considerados inadequados e, na verdade, com resultados muito mais maléficos que benéficos. Na realidade, chegou-se à conclusão que as internações psiquiátricas são procedimentos mais cômodos para o contexto social (a mesma comodidade de internar menores incapazes em instituições para que a sociedade fique livre deles), mas são verdadeiros procedimentos de exclusão de cidadania. Sem dúvida, esta é uma constatação que se fez há muito, mas, somente a partir da década de 80 do século XX iniciaram as medidas práticas para tentar reverter tal situação. Cite-se como experiência a pioneira e conhecida lei italiana (Lei Basaglia), de inspiração e influência de Franco Basaglia, para uma sociedade sem manicômio.

 

O Brasil, seguindo a tendência mundial, vem fazendo há alguns anos a discussão da sociedade sem manicômios. Como consequência aprovou a lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, bem como regulamenta a internação psiquiátrica, voluntária ou não.

 

Tanto o documento da ONU quanto a lei brasileira centram sua ideia principal na involuntariedade das internações do louco. Isto é revolucionário no aspecto do instituto das interdições e capacidades, pois é o mesmo que conceder vontade ao louco, elemento até então desconhecido e ignorado pelo Direito, mas essencial para o instituto da capacidade e curatela.

 

7. CONCLUSÃO

Diz-se popularmente que a “inteligência está a um passo da loucura”. O Dicionário Enciclopédico Brasileiro, de ALOISIO MAGALHÃES (1855) registra que TEIXEIRA DE FREITAS, ao falecer, estava privado da razão em virtude do excesso de estudo. Foucault nos revela que a loucura não se reduzia à loucura, pois eram encarcerados no asilo os debochados, os insensatos, os heréticos, vagabundos… Os pródigos, ou seja, aqueles que gastam sua fortuna desordenadamente, embora não esteja dito expressamente que são loucos ou demenciados, são tratados como uma espécie de loucos, uma vez que podem ser interditados, ainda que parcialmente (art. 1767 do CCB de 2002).

 

Estas e outras menções significam, em nossos dias, o pouco conhecimento que se tem sobre a loucura, o que justifica ter sido um tema que tão pouca atenção teve do jurista. Talvez por isto, TEIXEIRA DE FREITAS tenha preferido a expressão loucos de todo gênero para emprestar ao Código Civil de 1916 uma expressão bastante genérica, opondo-se ao conceito onipresente de normalidade. Advém do século XIX e só com a promulgação do Código Civil de 2002 foi alterada.

 

Com a psicanálise e a evolução da psiquiatria, a concepção da loucura tornou-se mais clara e, com isto, a expressão de nosso Código Civil de 1916 foi suprimida. Obviamente que a evolução do Direito não se reduz a meramente mudar uma expressão para adequá-la a tempos modernos. Tal mudança é derivada de um debate entre o Direito e as ciências afins.

 

Dentre as três estruturas da personalidade – neurótica, perversa e psicótica – dadas pela Psicanálise, a última parece ser aquela na qual se enquadram os loucos. Neste sentido, podemos dizer que loucura é psicose. Normalidade é o universo constituído pelos neuróticos e perversos. É uma discussão que deve ser aprofundada.

 

Ao Direito interessa, então, saber até que ponto os processos do ego (lógica, consciência, razão, vontade, discernimento…), na estrutura psicótica, foram alterados pela forclusão da Lei-do-Pai. Isto porque há pessoas que têm estrutura psicótica mas não são necessariamente loucas, ou seja, são potencialmente loucas, mas nunca tiveram ou terão surtos ou crises, ou mesmo após as crises retornam à vida normal. Mesmo na psicose há intervalos lúcidos. Nem sempre o louco (psicótico) apresenta seus processos de ego adulterados em seu funcionamento global. Podemos citar os exemplos de estruturas psicóticas que jamais têm crise, ou mesmo exemplos de lucidez e brilhantismo de pessoas com esta estrutura em suas intercrises: LOUIS ALTHUSSER, DANIEL SCHREBER, TEIXEIRA DE FREITAS. A sentença de desinterdição de Schreber e seu livro de memórias, bem como o livro de ALTHUSSER vêm nos mostrar, apesar de seus surtos, que eles são capazes de gerir seus próprios negócios e devem ser responsabilizados por seus atos. Dá-nos o que pensar! Afinal, parafraseando LACAN, todo sujeito deve responsabilizar-se pelos seus atos.

 

Enfim, no momento em que os países do mundo inteiro rediscutem a situação do louco para que ele não seja mais um expropriado da polis, cujo reflexo registrou-se no documento de 17/12/1991 da ONU; no momento em que a suposta inferioridade desse louco é posta em questionamento pela evolução do conhecimento psi, o Direito precisa saber mais sobre as fronteiras da consciência e de seus processos volitivos para estabelecer qual o limite da responsabilização do sujeito em seus atos ou omissões. Para tanto, faz-se necessário verificar sua estrutura de personalidade, seu raciocínio, atuação e comportamento em suas relações sociais. Assim, tornou-se inconcebível, atualmente, em um processo de interdição, por exemplo, não se fazer o laudo dessa interdição através de uma equipe multidisciplinar. Médico, psicólogo e assistente social, juntos e a partir de seus conhecimentos específicos, são os que melhor poderão levar subsídios ao processo sobre a capacidade e limites da responsabilidade do interditando. É que a responsabilidade para os atos da vida civil estendem-se da esfera médica e psicológica até o campo social. Portanto, a formação do melhor juízo sobre aquele a quem nenhum juízo se atribuía, só estará próxima do ideal de justiça se demarcada com a ajuda de outros campos do conhecimento.

 

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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