Familiares, pacientes e MPE denunciam descaso no tratamento do Câncer


Filhos de ex-paciente que veio a óbito acusam hospital de descaso e negligência devido à falta de estrutura para realizar os atendimentos essenciais. Processo e Ação Civil Pública contra FCecon, falta de aparelho no 28 de agosto e mal atendimento na rede privada são denunciados

"Ele foi deixado para morrer sozinho, sem nenhuma assistência”. A frase comovente é de Carlos Eduardo Pontes, filho de Francisco Carlos de Souza Pontes, que faleceu no dia 4 de dezembro do ano passado, aos 55 anos, vítima de câncer.

A família acusa de descaso e despreparo a Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (FCecon), onde Francisco realizava tratamento antes de falecer.

A fundação está, desde 2009, sendo processada pelo Ministério Público Estadual (MPE), com o Estado do Amazonas, por falta de medicamentos, estrutura e profissionais. Esses itens foram, inclusive, o que supostamente ocasionaram na prematura morte de Francisco Pontes, de acordo com relatos e documentos de seus familiares.

A batalha de Francisco começou em 2008, quando foi descoberto que ele, técnico sênior em telecomunicações, tinha liposarcoma de mediastino, ou seja, um tumor maligno alojado no peito.

Em dezembro do mesmo ano, ele submeteu-se à primeira cirurgia, no FCecon e, tendo corrido tudo normalmente, foi encaminhado, no começo de 2009, aos tratamentos de prevenção: quimio e radioterapia. Foi aí que os problemas começaram de fato: “Tanto a médica-oncologista, dra. Adelaide Portela, quanto o radiologista, o dr. Leandro, dispensaram os tratamentos para meu pai, alegando que não havia necessidade, mesmo sabendo que o tumor era maligno”, afirma Carlos.

Ainda de acordo com ele, o dr. Leandro, que deu uma atenção mais do que esperada para o paciente, confessou que o motivo de Francisco não ser submetido aos tratamentos era que os “aparelhos necessários não estavam em pleno funcionamento e podiam prejudicar ainda mais o paciente”. Francisco foi levado, então, à Oncoclin, clínica particular pertencente à própria Adelaide Portela e uma das maiores do Norte do País.

“Depois da primeira cirurgia, ele estava bem, tanto que quase não perdeu peso. Mas já que ele não teve o tratamento de prevenção, o câncer acabou voltando, mais forte ainda”, revela Carlos, acusando os médicos de terem omitido informações vitais, só descobertas posteriormente graças a um tio, que também é médico.

Já com a saúde debilitada, Francisco foi internado novamente no FCecon em abril de 2010, onde supostamente seria operado. Mas, por três vezes, o procedimento foi adiado e só se concretizou no final de maio.

“Quando chegava no dia agendado da operação, não havia médicos disponíveis e acabavam mudando a data”, conta Carlos. Além de mais agressivo, o câncer já havia se espalhado pelo corpo do técnico, que agora contava com quatro tumores no peito e nas costas.

“Depois desta segunda operação, a saúde do meu pai piorou”, afirmou a filha.

Sem remédio, médico e desfibrilador

O dia 4 de dezembro de 2010 caiu em um sábado, justamente o dia em que a fundação conta com um efetivo menor. De acordo com Carlos e Carol, dos dez leitos da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) disponíveis no hospital, apenas cinco são usados até hoje, já que a outra metade, apesar de contar com tudo necessário, não poderia receber pacientes pela falta de funcionários especializados.

“Meu pai precisou de medicamentos (Cefepime 2g e Fluconazol 200g), que o hospital não tinha e nem sequer nos avisaram que estavam em falta. Só quando fomos questionar um médico (o peruano Javier Yataco Vela) foi que ele fez as prescrições e mandou comprarmos numa farmácia”, lembra Carol.

O encarregado de ir atrás dos medicamentos foi Carlos, sem saber que aquela era a última vez que estava vendo o pai ainda vivo. Ele ouviu as mesmas respostas nas mais de cinco farmácias procuradas: os remédios eram de uso exclusivo de hospitais e não estavam à venda, o que levou a família a questionar o preparo dos médicos, que indicaram algo sem saber a procedência.

Carol conta que seu pai precisou, então, ser operado urgentemente. “Mas não havia nenhum cirurgião de plantão para atendê-lo.” A família iria transferir Francisco para a Unimed e, já que o FCecon não tinha nenhuma ambulância disponível, tiveram que chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) para fazer essa transferência, só que a família teve mais uma – e, infelizmente, não a última – notícia ruim: o Samu afirmou que não poderia fazer esse transporte porque “há uma política governamental de não mover pacientes de um hospital para outro”.

Eventualmente, quando Francisco precisou ser reanimado, não havia desfibrilador no andar em que ele estava sendo atendido. “Tivemos que levá-lo até o andar térreo. Só que a cama, que tinha rodas, não passava pela porta. Foi necessário todo um procedimento de transferência da cama para a maca, o que demorou ainda mais”, relata Carlos. Os filhos denunciam, também, o abandono por parte dos médicos na hora da morte da vítima. “Não havia um médico lá para fazer algo. Ninguém deu assistência nem nada... foi algo chocante”, diz Carol. Quando Carlos voltou à fundação, seu pai já havia falecido. “Ele morreu por negligência e falta de medicamentos, mesmo motivo que fez eu me afastar dele neste momento de dor”, acrescenta o filho de Francisco.

Fundação Cecon se isenta de culpa

Em nota, a Fundação Cecon afirmou que mantém em todos os andares do hospital desfibriladores prontos para uso. “Na urgência, sempre há dois médicos plantonistas para atendimento e cirurgiões de sobreaviso para os casos de intercorrências cirúrgicas, o que não foi o caso, uma vez que o paciente, ao dar entrada no serviço de urgência, apresentava alterações clínicas e estava sendo tratado da melhor maneira possível com as medicações compatíveis aos sintomas que o mesmo apresentava”, dizia também.

A assessoria de imprensa da FCecon, que divulgou a nota, acrescentou que desde o início do caso, os médicos responsáveis alertaram à família se tratar de um caso grave. De qualquer forma, o paciente foi submetido ao melhor tratamento cirúrgico possível e ele realizou, por opção própria, tratamento complementar em clínica privada.

De qualquer forma, a família adianta que tomará todas as medidas judiciais possíveis. “Não se trata de dinheiro. É preciso uma humanização por parte deles (do FCecon). Quero que o sistema funcione de fato”, desabafa Carlos.

MPE

A FCecon vem sendo investigada desde 2009 por conta de denúncias revelando a precariedade dos serviços prestados pela fundação. Em setembro de 2010, o promotor de Justiça Mirtil Fernandes do Vale, titular da 56ª Promotoria Especializada na Proteção e Defesa dos Direitos Constitucionais do Cidadão (Prodedic), promoveu uma Ação Civil Pública do Ministério Público Estadual (MPE) contra o Estado do Amazonas e a FCecon.

Na ação, o promotor relata diversos problemas estruturais e humanos, e demandou resolução imediata por parte do Governo do Estado.
“O MPE atua nos interesses coletivos, onde se encaixa a saúde pública”, explica Mirtil, dizendo que é comum a promotoria que comanda receber reclamações de más prestações de serviço e se ver obrigada a instaurar um ato de investigação. As reclamações contra o FCecon resultaram em uma Ação Civil Pública “longa e trabalhosa”, como Mirtil descreveu, e está hoje na 1ª Vara da Fazenda Pública Estadual. O processo cobra “um reparo nas deficiências dos recursos humanos e materiais”.

Foi feita, em outubro de 2010, uma inspeção judicial na fundação e constatou-se, de acordo com o promotor, falta de medicamentos e equipamentos com mais de 20 anos que nunca haviam sido usado por falta de peça e manutenção. “Infelizmente, a população, que busca no hospital um atendimento superior, já que ele é referência no Norte do Brasil, acaba prejudicada”, afirma Mirtil.
(Fonte: Jornal A Crítica - 28/03/2010)