Doutrinas

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Primeira sentença de mudança de nome para proteção à testemunha na América Latina

MARCELO ANÁTOCLES FERREIRA


ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PODER JUDICIÁRIO
COMARCA DA CAPITAL
1ª ZONA DE REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS
Processo nº 01/2001
SENTENÇA
Vistos, etc.

X., beneficiário do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, devidamente qualificado nos autos, requereu, através de seu advogado, alteração de nome completo, com base na Lei nº 9.807/99.

Preliminarmente, requereu que o processo tramitasse em Segredo de Justiça e sustentou ser competente este Juízo por residir no endereço em que está sediado o Provita...

Com relação aos fatos, alega, em síntese, que, após parecer do Promotor de Justiça titular da Comarca onde prestou os depoimentos que provocaram sua proteção, foi incluído no Programa de Proteção a Testemunhas, por decisão do Conselho Deliberativo, datada de março de 2000. O ingresso do requerente no Programa deu-se em virtude de ter testemunhado, em uma série de processos judiciais, testemunho que resultou na prisão e desmantelamento de quadrilhas que atuavam em município... Após o seu ingresso, novos depoimentos foram prestados, resultando em condenações de diversos criminosos. Com isso, alega que, se risco havia no início, o risco, após as condenações, tornou-se muito maior.

O Promotor de Justiça da Comarca de origem afirma ser impensável que o requerente volte ao convívio social em sua cidade, sustentando ser o caso excepcional, gravíssimo, cercado de coações e ameaças, adequado à hipótese de mudança de nome.

Além deste parecer do Ministério Público, sustentando ser indispensável a mudança do nome, a equipe técnica do órgão executor, segundo alega o requerente, levou ao Conselho Deliberativo o pleito de alteração do nome, com pareceres técnicos ratificando a solicitação da testemunha e do Ministério Público.

O Conselho Deliberativo, por unanimidade, aprovou, administrativamente, a solicitação de alteração do nome, para encaminhar a petição inicial ao Poder Judiciário, o que foi feito, conforme comprova o ofício de fl. 17.

Solicita o requerente, por entender estarem presentes os pressupostos legais, além do Segredo de Justiça, a alteração do nome completo, sugerindo novo nome para a testemunha, a não inclusão de nomes dos genitores e progenitores, ..., as providências previstas em Lei e, por fim, a Gratuidade de Justiça.

A inicial vem acompanhada de procuração, do parecer do Promotor de Justiça da Comarca de origem e de certidão de nascimento do requerente.

A inicial foi encaminhada para a Presidência do Tribunal de Justiça, através de ofício do Conselho Deliberativo do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas...

Foi expedido ato conjunto da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria do Estado do Rio de Janeiro, regulamentando os procedimentos referentes à alteração do nome de testemunha, conforme previsto na Lei nº 9.807/99, cuja cópia se encontra nos autos, onde foi estabelecido, em virtude do sigilo, a designação de um Juiz para auxiliar a Zona do Registro Civil das Pessoas Naturais, para processos como este, bem como ofício ao Procurador Geral da Justiça para designação de um Promotor para atuar em feitos desta ordem. Além disso, foram estabelecidas normas de processamento, referentes a distribuição, tombo e registro da sentença.

A designação recaiu sobre este Magistrado, tendo sido designado o Dr. ..., como Promotor de Justiça para atuação neste processo, conforme documento de fl. 15.

O ilustre Promotor de Justiça, inicialmente, solicitou que se juntasse aos autos o ofício de encaminhamento da petição inicial, o que foi deferido, constando à fl. 17 dos autos.

Após, o Ministério Público apresentou parecer, requerendo, antes, por cautela, a juntada de FAC da testemunha.

Através de procedimento sigiloso, foi obtida a FAC da testemunha, que se encontra às fls. 23/24, sem qualquer anotação de antecedentes.
No parecer, o ilustre Promotor de Justiça, Dr. ..., sustenta que a alteração de identidade não representa ato inerente à vontade do requerente, mas medida protetiva da segurança da testemunha. Sustenta ser tal medida extremada quando não haja outra possível para garantir a integridade do requerente. Apresenta excelente estudo sobre a natureza da prova testemunhal, sustentando que, nos dias atuais, a testemunha, assistente involuntária do crime, é ameaçada pelo criminoso, oprimida pelo Estado e cobrada pela sociedade. Defende que a atual política de segurança pública provoca revolução no papel penal e social da testemunha. Com isso, afirma que a chamada "troca de identidade" nada tem de troca, mas de preservação da identidade. Em excelente conclusão, afirma que a alteração do nome representa medida extrema, não para preservação da identidade física da testemunha, mas para preservação de sua identidade moral. Antes de concluir e opinar, afirma ser marco histórico este procedimento, esperando pela procedência do pedido com a adoção de todas as medidas legais para sua efetivação, para que pelo menos seja preservada a cidadania da testemunha, já que não foi possível ao Estado preservar o seu nome.

E o relatório. Passo a decidir.

I - Da competência


A Lei nº 9.807/99 dispõe que o requerimento de alteração de nome completo da testemunha será encaminhado ao juiz competente para registros públicos (artigo 9º, caput). Ocorre que de acordo com a Constituição Federal (artigo 25 §1º), cabe ao Estado legislar sobre sua própria organização judiciária. No Estado do Rio de Janeiro, de acordo com o artigo 9º, III, do Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, cabe ao Juiz de Direito em matéria de Registro Civil de Pessoas Naturais processar e julgar retificações, anotações, averbações, cancelamentos e restabelecimentos dos respectivos assentos.

Assim, no Estado do Rio de Janeiro, diferentemente do que dispõe a Lei Federal, a competência é do Juiz de Direito, designado para apreciar matéria de Registro Civil das Pessoas Naturais, e não o juiz da Vara de Registros Públicos.

O Código de Organização e Divisão Judiciária divide em quatorze circunscrições, grupadas em sete zonas, o serviço do Registro Civil das Pessoas Naturais, na Comarca da Capital.

O endereço da sede do Programa, que é o único através do qual se pode localizar a testemunha, fica nesta zona e circunscrição.

Não existe, na Comarca da Capital, juiz titular para estas zonas, havendo designação periódica de juízes regionais ou titulares da Capital.

Este juiz de direito foi designado para auxiliar esta zona do Registro Civil das Pessoas Naturais, por ato, publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, sendo assim competente para julgar este feito, sem que haja qualquer ofensa ao princípio do Juiz Natural.

Neste ponto, é bom mencionar o Ato Executivo Conjunto nº 09/2001, da Presidência e da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que estabeleceu normas para o procedimento previsto no artigo 9º da Lei nº 9.807/99, dentre elas a consignação de um juiz de direito, bem como ofício Procurador Geral de Justiça para designação de motor de Justiça para o mesmo fim.

II - Do procedimento prévio


Apesar de não estar exposto especificamente na lei é evidente que a alteração do nome da testemunha, como medida excepcional, tem uma série de requisitos, dentre os quais um procedimento prévio.

Na inicial, é mencionado que a testemunha é protegida pelo Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, ou seja, foi incluída na rede de proteção, por decisão do Conselho Deliberativo, órgão que dirige o Programa. A inclusão desta testemunha ocorre, em regra, por provocação do Ministério Público, através do Promotor de Justiça natural. E realizado pelo órgão executor, ..., a ONG ...., um estudo da viabilidade do ingresso daquela testemunha, através de pareceres técnicos, da assistente social, psicólogo e advogado. Somente após esta triagem, o órgão executor apresenta ao Conselho Deliberativo a solicitação de inclusão da testemunha. O Conselho Deliberativo aprecia a solitação, junto com os pareceres técnicos e decide ela inclusão ou não da testemunha.

Somente uma testemunha que faça parte do Programa pode solicitar a excepcional medida de alteração de nome completo, já que o artigo 9º da Lei nº 9.807/99 dispõe que poderá o Conselho Deliberativo encaminhar requerimento de pessoa protegida.

Entretanto, para que o Conselho Deliberativo encaminhe ao Poder Judiciário o requerimento de alteração de nome, é necessário que o órgão executor apresente ao mesmo Conselho solicitação neste sentido.

No caso em exame, conforme consta na inicial, o Promotor de Justiça natural fez uma nova solicitação agora para mudança do nome, peça que se encontra nos autos (fls. 10/12). Com esta solicitação, o órgão executor, através de sua equipe técnica, elaborou novos pareceres, ratificando a solicitação da testemunha, avaliando a questão sob o aspecto psicológico, social e jurídico. Com este embasamento, a questão da alteração do nome foi apresentada ao Conselho Deliberativo, que entendeu ser a hipótese daquelas das excepcionais de alteração do nome, decidindo por unanimidade pelo encaminhamento do requerimento ao Poder Judiciário.

Este procedimento prévio é a grande garantia da excepcionalidade do requerimento, ou seja, não é qualquer pessoa que se sinta ameaçada, ou que tenha outro interesse, que pode pedir para ter seu nome alterado.

Assim, todo procedimento prévio foi atendido, havendo segurança para apreciação do requerimento, por tratar-se, de fato, de pessoa protegida e de requerimento devidamente encaminhado pelo Conselho Deliberativo, órgão que dirige o Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas Ameaçadas...

III - Do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas


A Lei nº 9.807/99, ao estabelecer normas para organização e manutenção de programas especiais de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, adotou o modelo que já vinha sendo implementado com sucesso no Estado de Pernambuco, pelo Gajop - Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares.

Neste modelo, único no mundo, a proteção é realizada em parceria do Poder Público com a sociedade civil, através de entidades não-governamentais.

Apesar das críticas recebidas, o programa chamado de Provita, do Estado..., criado em setembro de 1999, tem em sua rede de proteção 37 casos, com 112 pessoas atendidas, entre testemunhas, vítimas e familiares.

No Brasil, o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas funciona em dez estados (Acre, Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro), tendo atualmente 273 pessoas protegidas, sendo 111 testemunhas e 162 familiares de testemunhas, referentes a 85 processos ou inquéritos policiais.

Nestes dois anos de funcionamento do Programa no Brasil, nenhuma das testemunhas protegidas foi vítima de qualquer tipo de agressão ou ameaça, o que demonstra a eficiência e confiabilidade do programa.

Este modelo tem recebido algumas críticas de alguns seguimentos sociais, principalmente da área de segurança. Entretanto as críticas referentes ao modelo - sociedade civil e governo em parceria - não procedem uma vez que os números falam por si mesmos. Num país como o nosso em que, infelizmente, o crime organizado está intrinsecamente ligado com as esferas do poder, o que tem sido cantado em verso e prosa como resultado das malfadadas CPIs, seria impossível o próprio governo, sem a participação da sociedade civil, proteger aquelas pessoas que quisessem denunciar o crime organizado.

Somente um programa que tem a sociedade civil como grande realizadora e o governo como parceiro terá credibilidade para enfrentar o crime da forma como está organizado. Talvez assim, vítimas e testemunhas possam confiar e ter coragem para enfrentar todo um sistema, como Davi enfrentando Golias, ou como qualquer de nós que queira enfrentar Leviatã.

Nesta esteira, numa feliz coincidência, o Estado brasileiro amadurece, através deste Programa, com o primeiro caso de alteração de nome de testemunha, no aniversário de dois anos da Lei.

IV - A evolução da mutabilidade do nome


A questão do nome e sua mutabilidade tem raízes históricas que devem ser observadas.

A noção romana (ens est ens) cobre, na mesma ótica, a conceituação dos liames entre a pessoa e seu nome. Expressa uma inerência entre esses dois termos, um explicando e definindo O outro na vida social.

Assim, o nome é pensado enquanto vocábulo atribuído a uma pessoa e com o qual é chamada, por ser o seu designativo próprio e certo.

Portanto deve ser unívoco e a univocidade passa a ser base da definição social da pessoa no convívio social. Essa colocação decorre da seguinte anotação de Cícero:

Nomen est, quod uni cuique personae datur, quo suo quaeque proprio et certo vocábulo appellatur.

Ulysses é interpelado pelo Rei dos Feácios, como se lê na Odísséia de Homero, com as seguintes palavras: Dize-me o teu nome... todos os homens, sem exceção, bons ou maus, desde que nascem, têm um nome, que lhes impõe os pais quando vêm à luz.

Lê-se em Heródoto (História, 1.IV.184) que os Atarantes (Atlantes) eram primitivos porque se chamavam em conjunto (atarantes) e não individualmente, porque não possuíam nomes.

Fustel de Coulanges (A Cidade Antiga, I. 170, trad. Lisboa, 1941) afirma que cada grego possuía três nomes: o individual, outro paterno, e o terceiro que, na reversibilidade dos dois nomes, compunha o cognome, este terceiro nome era o indicador da gens.

O pensamento primitivo marcou a percepção do conteúdo mítico do nome das pessoas e das coisas. Por isso o nome primitivo era único, personalístico e não se transmitia aos descendentes, segundo informa Planiol (Traité Élémentaire de Droit Civil, t. I, 147, Paris, 1904.).

Nomear alguém era percebido como forma de evocar poderes. Assim, saber o nome do inimigo, representou, para o pensamento positivo, poder sobre esse mesmo inimigo. Essa explicação mítica da realidade cobriu, com semelhante fundamento antropológico, as atitudes na nomeação dos deuses como também dos santos. No mecanismo do indigitamento (nomeação ritual dos santos nas orações) estava ínsita a idéia de eficácia da postulação religiosa, quando o não pronunciar corretamente o nome implicava na inutilidade da prece.

O professor João Luiz Duboc Pinaud, consultado sobre o tema, leciona:

"O aperfeiçoamento da legislação sobre a possibilidade de mudar a identidade deverá, como é claro, buscar esgotar dos esquemas práticos para garantir não somente a pessoa protegida como a eficácia continua da própria modalidade protetiva. Avulta, assim, a necessidade de tipificar criminalmente todos os atos e principalmente as omissões que, de qualquer modo, possam concorrer para frustrar a mudança da identidade ou colocar em risco a pessoa protegida, bem como, de qualquer modo colocar em perigo qualquer servidor ou co-partícipe dos mecanismos de proteção".

"Não devemos perder de vista que o esquema da possibilidade de mudança já estava desenhado no Digesto, XXX, 4º parágrafo que estipulava: rerum enim vocabufa imutabilia sunt, hominum mutabilia. Assim, o nome das coisas é, em verdade, imutável, o dos homens, mutável".

"Sob Deocleciano, a possibilidade de mudar o nome passou a ser atributo do homem livre. Nada poderia impedir o homem de mudar seu nome, prenome ou cognome (nomen, vel praenomen, sive comnen), desde que o fizesse licitamente, sem nenhuma fraude (sine aliqua fraude licito iure) ou pré...o para terceiro...

"(...) Assim, para realizar essa finalidade identificadora os sistemas legais definem modalidades de embasamento jurídico que resultem em manutenção e preservação do nome como condição de eficácia de seu uso. Todas as garantias para fixação do nome, r...entanto, não podem apontar sempre para a imutabilidade. Em tais termos, o próprio sistema legal possibilita a mudança nos casos que estipula. Entretanto, o direito, enquanto lei e aplicação, é marcado pela vicissitude de novas situações que deteram seja, tanto quanto ao sistema como aos esquemas aplicativos, um constante trabalho de recondicionamento e transformação. Assim, o caso em tela representa - porque conseqüência da progressão dos níveis de criminalidade e perigo - um caso exigindo mutação radical e imediata. Deixam de deter validade as exigências de estabilidade do r..e, Sobrelevam pois as razões sociais de segurança pública, de garantia da aplicação da lei penal como resposta a uma criminalidade hipertrofiada, enquanto ligadas à tutela das vítimas e das testemulhas"

la visão do professor Pinaud, a possibilidade de n...lança de nome, hoje escrita no Direito Positivo Brasileiro, faz parte de uma evolução histórica, na que é flexibilizada a imutabilidade do nome, em virtude de outros interesses da própria sociedade.

O interessante observar a evolução do tema mudança de nome no direito pátrio.

A princípio havia rigidez com relação à mudança de pré-nome. Com o decorrer do tempo houve flexibilização para admitir-se mudanças nas hipóteses de nomes que levavam ao ridículo.

Posteriormente, houve flexibilização ainda maior, com a admissão de mudança do nome e do gênero, nas hipóteses de transexualismo. Aqui, cabe mencionar trabalho da Juíza Conceição Aparecida Mousnier em rumoroso caso de transexual que teve seu pelo deferido para adoção de nome civil feminino, apos intervenção cirúrgica modificadora de sua anatomia genital. Outra sentença que marcou história neste tema foi da lavra do Juiz de Direito Marco Antonio ...rahim. Nos dois rasos, houve pioneirismo e visão avançada com relação à forma de interpretar a lei de registros públicos em face da modificada realidade.

No caso da Lei 9.807/99, há previsão legal específica para alteração do nome completo de vítima ou testemunha protegida, podendo tal alteração estender-se ao cônjuge ou companheiro, aos ascendentes, descendentes e dependentes que tenham convivência habitual com a vítima ou testemunha.

Houve neste caso o avanço legal, devendo agora a sociedade mostrar maturidade para aceitar tal modernidade. Isto porque não basta a sentença com a determinação de alteração do nome. E preciso que se mude a mentalidade para se admitir socialmente todos os riscos e conseqüências que tal mudança provoca. O beneficiário do programa que tem seu nome alterado passa a ter duplo registro, podendo inclusive voltar a usar o nome original se quiser. Todos os direitos inerentes à pessoa e à personalidade continuam pertencendo ao beneficiário, que passa a ter uma dupla forma de exercê-los. Estes os riscos. As conseqüências para as quais a sociedade deve estar preparada referem-se a necessidade dos diversos órgãos e entidades estarem preparados para o fornecimento de documentos, diplomas, carteiras, para aqueles que tenham este benefício, sem questionar possíveis conseqüências ou querer saber das causas. As dúvidas vão ao infinito, uma vez que dentre os direitos acima mencionados temos os previdenciários, trabalhistas, sucessórios, eleitorais, dentre outros.

Se no caso dos transexuais ainda não há posição tranqüila no direito brasileiro, com relação à alteração do registro civil da testemunha ameaçada também não haverá serenidade entre os juristas e estudiosos.

Ocorre que, com relação à alteração do nome da testemunha, não se cogita de um direito do cidadão, mas de um dever do estado de garantir a própria cidadania, como salienta o Dr. ..., em seu parecer nestes autos. O Estado que não conseguiu garantir a segurança e a sobrevivência da testemunha com o seu próprio nome, altera o nome para garantir cidadania.

V - O tema no Direito Comparado


Em outros países também não há serenidade com relação a este tema.

Para citar somente um país com larga aplicação desta medida, é bom trazer a experiência italiana para o estudo.

Na Itália, é possível a mudança do nome de vítimas e testemunhas, sendo também possível a mudança do nome do réu colaborador. Lá, inicialmente, é fornecida para o beneficiário uma nova identidade, com um novo nome e número, sem necessidade de modificação no registro original. Este documento é provisório. Admite-se, também, a mudança no registro, com possibilidade de mudança de pré-nome, nome, local e data de nascimento.

A experiência italiana está a mostrar para o Brasil a necessidade de se iniciar um outro programa para proteção de acusados ou condenados colaboradores, como dispõe a própria Lei nº 9.807/99, devendo ser estudada a futura possibilidade de mudança de nome do réu colaborador.

Entendem os juristas italianos que trabalham com o assunto que sem esta face o programa fica incompleto e muito difícil de combater o crime organizado.

Cabe citar o Decreto Legislativo, de 29-03-1993, que "disciplina del cambiamento delle generalitá per la protezione di coloro che colleborano com la giustizia". Esse decreto, em seu artigo 3º, dispõe:

Decreto di cambiamento delle generalitá. Registro dei dati. 1. Com il decreto di cambiamento delle generalitá, sono atribuiu alla persona ammessa allo speciale programma di protezione nuovi cognome e nome, nuove indicazioni del luogo e della data di nascita, degli altri dati concernenti lo stato civile, noché dei datí sanitari e fiscali e sono individuate le situazioni soggettive di cui all´art. 12 de decreto-legge 15 gennaio 1991, n.8, convertito, com modificazioni, della legge 15 marzo 1991, n. 82, per le quali l'autorità appositamente designara dalla commissione centrale è incanicata di inoltrare le richieste di cui all'art. 4."

Percebe-se, assim, que o Brasil começa, talvez tardiamente, porém, com passos firmes, o combate ao crime organizado e à impunidade.

VI - Da fundamentação


Enfrentada a questão da competência, do procedimento prévio, bem como as demais questões de direito acima expostas, cabe apreciar o caso em exame.

Conforme já explicitado, toda a fase prévia foi realizada com todos os cuidados exigidos.

Trata-se de hipótese excepcional, dadas as características e gravidade da coação. Isto ficou demonstrado pelo parecer do Promotor de Justiça natural. Através do depoimento da testemunha-requerente, foi possível enfrentar uma quadrilha Z... O seu depoimento, segundo o Promotor de Justiça natural, resultará na condenação.,. Atualmente, o seu testemunho ajuda a desvendar crimes...

Por esses fatos, fica impossível o retomo da testemunha à sua cidade, bem como que ela tenha segurança neste Estado e até mesmo fora do Estado, usando o mesmo nome. Mesmo após a alteração do nome, o requerente deverá, por algum tempo, continuar tomando cautelas para preservação de sua segurança, tal a gravidade dos fatos que foram desvendados.

Não resta dúvida, assim, que estamos diante de um caso grave e excepcional. A coação e a ameaça são tão claras que se cogita do ingresso de irmão do requerente no Programa de Proteção a Testemunhas.

Cabe aqui uma análise do interesse da sociedade, aqui representada pelo Ministério Público e pelo próprio Poder Judiciário, na alteração do nome.

No Brasil, a aplicação dos Direitos Humanos vive uma fase diferente. Ultrapassado o período dos regimes de exceção, quando a preocupação maior era com a vida, integridade física e mínimos direitos dos acusados, fossem ou não perseguidos injustamente pelo sistema, vive-se hoje uma real preocupação com as vítimas. Vários programas estão em plena execução em nosso País, voltados para essa preocupação.

Diariamente são construídos abrigos e diversos são os programas de atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica. Começa a nascer uma cultura de proteção dos principais incluídos aí os homossexuais e os negros. Nesta linha, se robustece no Brasil o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Nascido da própria sociedade, através de experiência exitosa do Gajop, no belo estado de Pernambuco, o Programa conta com várias pessoas protegidas e já ajudou a sociedade a desvendar diversos crimes, todos envolvendo quadrilhas e ligados ao chamado "crime organizado". Proteger vítimas e testemunhas, resguardando os direitos das mesmas, para o nosso País é uma mudança de página no capitulo dos Direitos Humanos. Proteger vítimas e testemunhas da maneira eficiente com que tem sido feito no Estado ... e no Brasil, nos faz crer que o Brasil, de fato, se encontra no alvorecer do Terceiro Milênio, no amanhecer da Era de Aquários, onde o império da verdade e da justiça vence a mentira e a impunidade.

Cada testemunha que no dia-a-dia forense, nos corredores das Casas da Justiça, corajosamente, presta o seu depoimento e ajuda a desvendar os crimes, representa a figura do verdadeiro cidadão, resgatando a originária idéia do pacto social, chamada de herói, por uns, ou de cumpridor dos deveres, por outros. Essas pessoas nos fazem acreditar nos sonhos de Rousseau, de um Estado justo, onde as leis funcionam porque cada um, portador de direitos e deveres, colabora com a máquina do Estado.

Esta pessoa, que ajuda o Estado a desvendar diversos crimes, transforma-se num símbolo, por ser a primeira que pleiteia a alteração do nome. Ter o nome alterado: prêmio ou castigo? Se esta pessoa já teve sua vida modificada, sofreu coações e ameaças, e se encontra longe dos seus, sob a proteção do Programa após a mudança de nome, perde a própria identidade, como se morresse em vida para nascer de novo, sendo a mesma pessoa com um novo nome.

É triste a aplicação de institutos como esses em nosso País, como já se aplica em países de primeiro mundo. Se isto representa um avanço democrático e institucional, nos faz avaliar a gravidade do momento que vive a sociedade brasileira, que tem que mudar o nome dos seus cidadãos para preservar a vida e a própria cidadania dos mesmos.

Nem prêmio, nem castigo, o interesse da sociedade, neste momento, é o de estimular o requerente para que, de fato, inicie uma vida nova com menos riscos, já que impossível afastá-lo completamente de todos os riscos.

Cabe aqui lembrar a máxima do Marquês de Maricá: "Temos o mesmo nome nas diversas idades da vida e, contudo somos bem diferentes de nós mesmos em todas elas". A partir do momento que o requerente tem sua vida modificada por ter prestado testemunho e colaborado com a sociedade, tornou-se diferente do que era antes, em benefício a coletividade, merecendo tratamento diferenciado do Estado, no sentido de fazer jus a um novo nome.

O objetivo de todos aqueles que trabalham no Programa de Proteção a Testemunhas e o objetivo deste Magistrado, honrado pela oportunidade de subscrever esta histórica sentença é mostrar para o povo brasileiro que o Brasil não quer ser mais o país da impunidade.

Mostrar para a sociedade brasileira que, se existem criminosos na estrutura do poder, nesta mesma estrutura existem pessoas preocupadas e ocupadas no combate ao "crime organizado". Por fim, o objetivo é mostrar ao próprio "crime organizado" que não existe mais o conforto da certeza da impunidade. Amanhece um novo dia, oxalá, seja o Dia da Justiça.

Assim, evidente que, demonstrado o risco e imperiosa necessidade de manutenção da proteção, a hipótese é de procedência do pedido, com alteração do nome, conforme solicitado.

VII - Do dispositivo


Pelo exposto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO PARA DETERMINAR A ALTERAÇÃO DO NOME COMPLETO DO REQUERENTE, CONFORME SOLICITADO.

Oficie-se ao cartório de origem para averbação no registro original de nascimento, apenas para constar que houve alteração de nome completo, conforme o disposto no inciso I, do artigo 9º, da Lei 9.807/99.

Expeça-se ofício para novo registro do requerente, com nome de X.

Expeça-se ofício para o Instituto Félix Pacheco, para os fins do disposto no parágrafo 4º, do artigo 9º, da mencionada lei.

Defiro a Gratuidade de Justiça.

Em virtude do sigilo, todos os ofícios deverão ser elaborados pessoalmente pela Secretária deste Juiz, com toda a cautela necessária.

Dê-se ciência pessoal da sentença aos ilustres advogados do programa.

Dê-se ciência pessoal ao ilustre Promotor de Justiça.

Registre-se em livro próprio, conforme Ato Executivo Conjunto nº 09/2001, e arquive-se... para absoluta preservação do sigilo das informações constantes destes autos.

Rio de Janeiro, 13 de julho de 2001.

Marcelo Castro Ariátocles da Silva Ferreira
Juiz de Direito

Ética e institucionalidade

Suely Souza de Almeida


A análise do tema proposto requer a apreensão do significado social de um Programa de Proteção a Testemunhas (e de suas bases de estruturação) na formação social brasileira em uma conjuntura dada menos de duas décadas após o início do processo de redemocratização do país, que, se de um lado, significou a ruptura com a ditadura militar instaurada em 1964, de outro, preservou características autoritárias e excludentes daquele regime político (Coutinho, 2000).

Trata-se de um país que apresenta contornos histórico-espaciais propícios à proliferação de determinadas formas de violência e criminalidade: dimensões continentais, com fronteiras e espaço aéreo desprotegidos, cujas periferias, em alguns casos (o mais notório é o do Rio de Janeiro) se constituíram em estreito vínculo e relações de proximidade com as camadas urbanas médias e abastadas, cujas favelas com suas peculiaridades arquitetônicas e geográficas favorecem sua ocupação e domínio pelo narcotráfico³, com uma das piores distribuições de renda do planeta (encontra-se em penúltimo lugar, conforme Gonçalves, 1999:47)? com uma legião de famintos (quase 10% da população brasileira), com a rotinização e naturalização de práticas de execução extrajudicial de segmentos específicos da população, sobretudo pelas polícias militares, com um passado escravocrata recente e um legado peculiar do Estado autocrático - a imposição dos atos mais arbitrários e do seu esquecimento pela via legal (os atos institucionais, os processos contra os "terroristas", a Lei da Anistia) e que nos deixa como patrimônio coletivo a cultura da impunidade.

A violência no Brasil só pode ser entendida como processo, como produto de relações históricas. As condições particulares vividas pelo país não só tornam possível a emergência de determinadas formas de violência e criminalidade, mas também condicionam a nomeação e a visibilidade de algumas de suas modalidades - excluindo outras menos visíveis -, o que produz um inventário hierarquizado de expressões desses fenômenos, bem como do grau de reprovação social que lhes é dirigida.

No Brasil contemporâneo, a violência difusa que associa crimes contra o patrimônio e crimes contra a pessoa e que atinge predominanternente (mas não exclusivamente) as camadas médias e mais abastadas é aquela que ganha maior visibilidade nos meios de comunicação, que gera protestos, sobretudo nas regiões mais nobres dos grandes centros urbanos, que mobiliza formuladores e executores de políticas de segurança pública e que, no limite, permite a associação mecânica entre pobreza e criminalidade. As nossas condições históricas marcadas por um legado de relações hierarquizadas, autoritárias, arbitrárias, capazes de subsumir o público ao privado encobrem outras formas de criminalidade que envolvem o poder político e financeiro do país.

A tendência é a de apropriação ideológica da violência e da criminalidade urbana5 - mais especificamente daquelas modalidades cometidas por indivíduos pertencentes às camadas mais pauperizadas contra integrantes das camadas médias e mais abastadas do país. É a partir dessa expressão da violência urbana que ocorre um processo de internalização de um terror aparentemente difuso, cujos riscos estão apenas também aparentemente distribuídos de forma homogênea na sociedade. A cultura da violência e do terror penetra nos espaços mais íntimos aos mais coletivos da vida social, o que torna essa cultura o solo no qual se enraíza uma das formas de sociabilidade dominantes no mundo contemporâneo - aquela plasmada na vivência e na luta cotidiana contra a violência.

Esse caldo de cultura, nos dias atuais, oferece condições objetivas e subjetivas para a privatização da justiça (justiça pelas próprias mãos, execuções sumárias, linchamentos, seguranças privadas, guetizações dos espaços urbanos) e pelo clamor por um Estado forte (menos corno garante de direitos coletivos e de políticas sociais universais, que a hegemonia neoliberal sacrifica de forma avassaladora, do que como capaz de mobilizar mais força e arsenal bélico no combate à "criminalidade comum").

As bases de organização dos grupos de extermínio remontam ao final da década de 50, com a organização dos Esquadrões da Morte, que ganharam notoriedade nas duas décadas seguintes e que se fortaleceram na ditadura militar, atuando não só ao lado da polícia política (como integrantes do esquema de segurança), mas colaborando para "diminuir os índices de criminalidade" entre as populações das periferias dos centros urbanos. (Coimbra, 1997/1998). Os grupos de extermínio têm produzido chacinas em seqüência, difundindo o genocídio entre segmentos populacionais que representam ameaça aos setores dominantes.

Nas formas de violência contemporânea, há alta incidência de crimes praticados por policiais militares, como resultantes de ações isoladas ou como integrantes dos referidos grupos de extermínio, o que constitui grave violação dos direitos humanos. De acordo com Pinheiro, "...a polícia militar tem se dedicado às execuções sumárias nas áreas urbanas e nas regiões de conflito rural; nas grandes metrópoles, policiais militares são os principais agentes causadores da morte..." (199 :210)

Crimes dessa natureza, portanto, têm vitimado principalmente segmentos populacionais que vivem acentuadas desigualdades sociais. Assim, a violência expressa relações de forças que envolvem indivíduos, que não são seres abstratos, mas se inserem desigualmente em relações sociais fundamentais (de classe, gênero, étnicas, além das geracionais). Jovens, pobres, do sexo masculino e, em grande parte, negros eis o perfil dominante das vítimas de mortes violentas nos grandes centros urbanos brasileiros. Como afirma Zaluar, ".. a guerra é uma fala constante nas falas desses jovens e uma realidade tão trágica em suas vidas. O ethos da masculinidade, muito forte na cultura da rua, constrói-se, entre eles, sem o contraponto do feminino e impõe a necessidade de responder às provocações e às humilhações de modo violento." (233) Tornam-se, dessa forma, alvos privilegiados das forças de repressão (institucionais e para-institucionais).7
Ao contrário da primeira forma de criminalidade mencionada, que gera imediato clamor de toda a sociedade pelo fim da impunidade, as práticas de extermínio e de execução sumária de setores já excluídos socialmente revelam grande tolerância social (Pinheiro, 2000; Zaluar, 2000; Paoli, 2000), o que tem corno corolário o apoio (com diferentes graus de explicitação) de determinados segmentos sociais ao extermínio de grupos com inserções de classe e étnica subordinadas, como forma-limite de combate à criminalidade.
Outra dimensão da criminalidade brasileira que não pode ser secundarizada é a expansão do narcotráfico e suas ligações transnacionais, envolvendo poder político e financeiro nos países que lhe são vinculados. Zaluar (op. cit.) estabelece clara relação entre o aumento dos índices de violência e criminalidade em regiões metropolitanas brasileiras e sua presença no roteiro do tráfico de drogas, o que sugere sua ramificação em várias atividades ilegais. A respeito do crime organizado, a autora afirma:

"...trafega nos preços cartelizados, na punição com a morte daqueles que ousam desobedecer à ordem e à vontade do chefe ou simplesmente denunciá-lo. Os pequenos traficantes da favela, apesar de todo aparato militar, na verdade, estão ajudando a enriquecer aqueles que controlam o tráfico de drogas em toneladas e o contrabando de armas, o receptador, o policial corrupto, o advogado criminal e assim por diante." (1997:230)

Diversos estudos sobre violência realizados no Brasil têm corroborado a análise de Pinheiro, que contesta a tese presente reiteradamente na literatura especializada sobre a existência de um Estado paralelo nos grandes centros urbanos cujas periferias são dominadas pelo narcotráfico. Assim se expressa o autor: "Governos não renunciam gratuitamente aos requisitos de existência do Estado: território, legalidade e monopólio da violência física legal. Não há renúncia, não há constituição de Estado paralelo, mas conluio criminoso entre governantes, seus agentes e os banqueiros do jogo de bicho, que servem de fachada para o crime organizado". (199 7:2 18)

Se, de um lado, é pertinente tal análise - isto é, a violência e a criminalidade, segundo o autor referido, são fenômenos que não guardam relação de exterioridade com o Estado -, de outro, não se pode desconsiderar a crescente autonomização das polícias (reitera-se: este é um dos setores estatais mais envolvidos com os extermínios nos centros urbanos) frente ao Estado.

O processo de redemocratização do Brasil não representou uma ruptura com a tutela militar, que, nos termos de Coutinho, é uma das características do tipo de transição política "fraca" vivida no país. O autor assim a define: "....a tutela militar, vale dizer, a atribuição de uni peso político às forças armadas sem nenhuma relação com o balanço de forças efetivamente presentes na sociedade civil." (2000:93)

Essa tutela é, ratificada por Pinheiro, ao referir-se à concepção militarizada da segurança pública, a qual "...foi confirmada na Constituição de 1988, que manteve intocada a organização policial formulada pelos governos militares depois de 1967, pelo Capítulo III, da Segurança Pública um dos textos flagrantes da mais alta insensibilidade para a necessidade de desmilitarizar o aparelho de Estado depois da ditadura." (1997:209)

A crescente autonomia das polícias, em especial das militares desde os anos de chumbo, não é resultante das também crescentes violência e criminalidade; antes, evidencia a concepção de que o controle militarizado da sociedade é estratégico para a manutenção do autoritarismo que marca as relações esta e o Estado (Pinheiro, id.).

Em linhas muito gerais, está delineado o contexto fortemente marcado pela cultura da violência e da impunidade, no qual é gestado o Programa de Apoio e Proteção a Vítimas, Testemunhas e Familiares de Vítimas da Violência (PROVITA), pioneiramente implantado pelo GAJOP, na capital pernambucana em 1996, e, posteriormente, expandido para os Estados da Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Pará, Minas Gerais, Goiás e Acre. Os Provitas estaduais são coordenados e monitorados pelo GAJOP, são mantidos através de ações coordenadas entre o Ministério da Justiça, os Governos Estaduais e as entidades gestoras, que são organizações não-governamentais, em geral, engajadas na luta pelos direitos humanos. Registra-se também a existência do Provita-BR que, contando com uma equipe específica, presta assistência a vítimas e testemunhas oriundas de Estados que ainda não dispõem do Provita.

Cada equipe do Provita é composta por: um(a) coordenador(a), um(a) assistente social, um(a) psicólogo(a) e um(a) advogado(a). Os profissionais são predominantemente jovens, com experiência profissional ainda em construção na área dos direitos humanos e verifica-se alta taxa de feminização entre os grupos de assistentes sociais (a totalidade) e de psicólogos. As equipes passam por um processo de capacitação permanente: participam, anualmente, de um Seminário Nacional, ocasião em que ocorre intercâmbio com Programas similares de outros países (como os da Inglaterra, Itália, Estados Unidos e Canadá) e de duas oficinas de capacitação nestas, as equipes contam com duas consultoras que, embora tenham formação nas áreas, respectivamente, de Psicologia e Serviço Social, realizam as oficinas com a presença dos profissionais de todas as áreas, inclusive dos Coordenadores. As demais, as equipes estão participando do Curso de Especialização cru Direitos Humanos e Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, oferecido pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual se originarão trinta monografias e duas publicações.

Esse processo deformação continuado, de iniciativa do Gajop e com financiamento do PNUD/Ministério da Justiça, é fundamental tanto para o desenvolvimento de competências específicas, a construção da interdisciplinaridade, a superação de práticas reiterativas, imediatistas e esvaziadas de reflexão e elaboração teóricas, quanto para a formação de redes e o fortalecimento das possibilidades de criação de um Programa efetivam ente nacional, que sedimente as bases para o intercâmbio de testemunhas em todo o Brasil.

Cada Provita estadual conta com um Conselho Deliberativo, composto por representantes de órgãos governamentais (corno o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Secretarias de Justiça e de Segurança, dentre outros) e não-governamentais (como a OAB e outras organizações da sociedade civil, corri destaque para entidades de defesa dos direitos humanos). Cada Programa organiza, ainda, única Rede Solidária de Proteção, composta de Colaboradores (vinculam-se ao Provita através de campanhas, programas de geração de rendas, etc.), Prestadores de Serviços (profissionais liberais que oferecem serviços gratuitos em seus locais de trabalho) e Protetores (mantêm vítimas e testemunhas em locais seguros). Os Protetores são selecionados criteriosamente, de modo geral, entre militantes da área de Direitos Humanos, com história indubitável de vinculação a ideais ético-políticos ou humanistas claros, que partilhem do projeto, liderado pelo Gajop, que visa à redução da impunidade e da violência no país.

Cada equipe, portanto, constrói sua rede de proteção, o que significa o mapeamento das forças políticas presentes no Estado, capazes de partilhar valores de solidariedade e justiça, que para aludir a reflexões de Coutinho -, vão contra a corrente da profusão de valores individualistas tão bem difundidos e incentivados pelo ideário neoliberal. Esse é, pois, uni ponto a ser ressaltado -os Provitas estão formando redes de solidariedade, que se constituem no enfrentamento e combate a crimes, cuja característica comum é a mobilização considerável de poder pelos criminosos: grupos de extermínio, narcotraficantes, policiais e autoridades vinculadas ao poder político e financeiro local. Nesse sentido, representam uni ponto de inflexão na Juta por direitos humanos no país.

O Programa em questão apresenta uma clara característica: é financiado pelo Poder Público e gemido por uma organização da sociedade civil, modelo de gestão que vem se difundindo no Brasil e em diversos outros países e que se encaixa muito bem à hegemonia neoliberal. Esse ponto vale a pena ser melhor discutido, para não se correr o risco de tentar adequá-lo a um esquema de análise que desconsidere suas singularidades.

Coutinho argumenta que os defensores e promotores do projeto neoliberal não só reconhecem mas também incentivam a organização da sociedade civil, nos limites da defesa de interesses corporativos. Afirma: "Do ponto de vista ideológico, essa postura se manifesta, entre outras coisas, na tentativa teórico-prática de 'despolitizar' a sociedade civil, transformando-a num suposto 'terceiro setor', o qual, situado para além do Estado e do mercado, seria regido por urna lógica pretensamente solidarista e filantrópica'; de resto, uma vez constituído tal setor, o Estado deveria transferir para o mesmo suas responsabilidades na gestão e implementação dos direitos e das políticas sociais." (98)

Com efeito, é evidente a tendência crescente à transferência das responsabilidades do Estado para o chamado "terceiro setor", sobretudo nas áreas consideradas não-prioritárias ou residuais, o que abre a possibilidade de para retornar expressões de Worms (1994) que as organizações da sociedade civil se tornem mais instrumentais e instituídas do que instituintes. Em outros termos, enfrentam tais organizações o risco de representarem menos uma força política, enquanto 'conjunto plural dos sujeitos políticos coletivos' (Coutinho, 2000:27), que introduzem na esfera pública interesses organizados, e de se tornarem, antes, gestoras de recursos escassos pelos quais precisam lutar periodicamente, além de reforçarem a fragmentação das diversas ações e projetos que poderiam integrar, de fato, uma política social.

Todavia, a análise do Provita não é tão simples. Esse Programa presta assistência a pessoas (e às suas famílias) expostas a graves ameaças, posto que têm conhecimento de crimes envolvendo agentes do próprio Estado ou seus parceiros (é preciso lembrar os estudos de Pinheiro) e, nessa condição, prestarão testemunho contra os criminosos. Tudo indica que o Estado teria reduzida credibilidade de se responsabilizar por prover a integridade física dessas pessoas, posto que agentes das corporações policiais são os principais autores de execuções sumárias e violadores dos direitos humanos, com a convencia de instituições e autoridades governamentais.

As testemunhas e/ou vítimas são deslocadas dos seus locais de origem, em operações de traslado que envolvem estratégias de segurança aprimoradas quotidianamente e removidas para locais seguros, mobilizando, para tanto, a rede de proteção, que, como se afirmou anteriormente, é organizada levando-se em conta a análise das forças políticas e sociais presentes em cada Estado. A decisão de incluir urna testemunha no Programa de Proteção (ou de excluir) cabe ao Conselho Deliberativo, com base em parecer técnico elaborado pelos integrantes das três áreas profissionais que constituem as equipes?. Tais procedimentos são apoiados na Lei nº 9807, de 13/07/99, que institui o Programa de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, para cuja elaboração o Gajop forneceu, em 1997, subsídios fundamentais.

Trata-se de seres singulares que deixam para trás suas histórias de vida de relações familiares, afetivas, de desafetos, de acomodações e resistências, que abandonam projetos e, ao fazê-lo, abrem mão de identidades construídas ao longo de suas trajetórias de vida. Passam a contrair novas relações e assumem novas identidades são identidades clandestinas em tempo de normalidade democrática. Ao ingressarem no Programa que não é propriamente uma escolha, mas uma tentativa desesperada de autoproteção, testemunhas e/ou vítimas comprometem-se a observar rígidas normas de segurança: não podem revelar suas identidades nem fragmentos de suas histórias mesmo na esfera da intimidade, a sua comunicação com o mundo externo é estritamente condicionada por sua capacidade de fazer uso seletivo da memória e da linguagem.

Não é difícil concluir que a violência constitui uma condição material que engendra novas formas de sociabilidade e produz determinados sujeitos. São sujeitos que vivem experiências de desenraizamento forçadas pelas tentativas de escapar à violência institucionalizada cuja conseqüência mais imediata é a probabilidade do seu próprio aniquilamento. A memória desse Programa e constituída por experiências compartilhadas por diferentes sujeitos, em uma época em que há "uma enorme quota de luto humano".(Revueltas). Vive-se a era do genocídio sistemático (Hobsbawm, 1995), em que as condições materiais de vida das camadas populares são dotadas de formas de brutalidade que desafiam a tolerância humana. E um tempo de luta vida x morte, que se materializa em projetos e vidas que podem ser (ou foram) bruscamente interrompidos, mas que podem gerar novos projetos e novas formas de vida, na perspectiva da nostalgia aberta de que fala Cardoso: "a 'nostalgia aberta' é um tipo de memória que produz os 'lugares da memória' a partir da dor (1996). É a partir da dor como geradora de um lugar social, que esses sujeitos, ao se confrontarem com situações-limite, buscam negociam suas novas condições de vida, passam a contrair novas relações que atravessarão novas culturas. E um exílio no próprio país, sem perspectiva de volta, posto que esta não é condicionada à luta pela mudança de um regime político. E a violência que se inscreve na lógica do processo de redemocratização do país.

Trata-se de seres singulares, que, no limiar no século XXI e do terceiro milênio, repõem a luta por direitos em uni outro lugar pugnam pelo direito a um dos mais básicos dos direitos civis o direito à vida, e, ao fazê-lo, renunciam a dois direitos civis também básicos o direito à liberdade de expressão e o de ir e vir. A liberdade torna-se o preço a pagar pelo direito à vida a tinia vida sem liberdade - e o testemunho torna-se moeda de troca para o acesso a condições menos indignas devida, o que lhes permite aceder a alguns direitos sociais à educação, habitação, saúde, dentre outros. Nessa tensão, todos os envolvidos profissionais, voluntários, testemunhas e vítimas - lutam pelo direito) à justiça que, como afirma Alvarez, ... é o mais fundamental dos direitos civis, já que ele constitui um 'direito aos direitos'. A efetivação desse direito requer profundas mudanças, reformas no sistema judiciário, como tem proposto um crescente número de juristas, cientistas sociais e forças políticas progressistas." (1997:245)

Um dos aspectos problemáticos da Lei nº 9807 diz respeito ao artigo 2º, parágrafo 2º, que afirma: "... estão excluídos da proteção os indivíduos cuja personalidade ou conduta seja incompatível com as restrições de comportamento exigidas pelo programa...", o que dá margem ao enquadramento (por parte das equipes) das diferenças (concernentes aos "beneficiários") em estereótipos que são constitutivos das desigualdades sociais, o que, no limite, pode aprisionar ainda mais - aqueles que já vivem presos a normas, vigilâncias e disciplinamentos às visões de mundo dos jovens profissionais engajados na luta pelos direitos humanos.

É necessário se ter atenção para a contradição entre os valores que o programa busca difundir e consolidar e a experiência cotidiana, que pode fragilizar os direitos humanos daqueles que ingressaram no Programa exatamente porque tiveram os seus mais fundamentais direitos violados. Nesse sentido, parece importante a seguinte reflexão de Coutinho: "Temos que imaginar como difundir valores solidários, cooperativos e públicos, a partir do fato de que as pessoas também têm interesses individuais." (1997:143)

Para finalizar, ressaltam-se dois méritos do Programa: o de ter conseguido pautar o debate sobre direitos humanos no Brasil, de forma qualificada, e o de estar formando unia rede solidária de entidades, imperceptível ao público condição para sua existência - que comungam um projeto ético-político e que pode ter um importante papel não só na difusão de valores públicos e cooperativos, mas também no comum bate à cultura da violência e da impunidade, posto que não se trata tão-somente de mais unia política social, mas de uma intervenção ao nível da própria cultura. Como afirma Paoli, "... esses direitos [humanos] supõem a consideração da violência como intrinsecamente ligada a uma política ampla, que se imprime nua forma administrativa do governo, nas relações de desigualdade e conflito, dos indivíduos, suas mentalidades, nas heranças históricas." (1997:250)

E nesse contexto CFUC a gestão desse Programa por entidades de defesa dos direitos humanos precisa ser considerada. O Gajop e outras entidades brasileiras participam de redes internacionais de direitos humanos e, nesse sentido, representam o elo de ligação com as normas internacionais sobre a proteção de garantias fundamentais (cf. Paoli, id.), as quais, se no Brasil ainda são permanentemente violadas, ainda assim, representam mais um importante patamar de lutas.

Conferência proferida em 11/11/2000, no III Seminário Nacional de Assistência a Testemunha e Vítimas Ameaçadas, organizado pelo Gajop e realizado em Recife, em parceria com a Secretaria de Estado de Direitos Humanos da Justiça/PNUD.

* Professora Adjunta e Diretora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Serviço Social e Doutora em Ciências Sociais.
3. Segundo Cantos a cidade, enquanto relação social e materialidade "torna-se criadora da pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico de que é o suporte como por sua estrutura física, que faz dos habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato de o modelo sócio econômico vigente, mas do modelo espacial"(1994: 70).
4. Pinheiro observa, a partir dos dados coligidos sobre violência, que ha uma associação inequívoca entre o nível de renda de um pais, a distribuição de recursos e o grau de seu respeito pelos direitos humanos" (1997:215)
5. Refiro-me a uma categoria utilizada por Cardoso (1998), ao analisar o papel dos meios de comunicação na produção de determinados fenômenos, que tem se caracterizado pela simplificação da história ou pela retirada do sentido histórico dos mesmos. E a espetacularização da realidade.
6. À época da Chacina de Vigário Geral (1993), registravam-se 183 grupos de extermínio atuantes no Estado do Rio de Janeiro.
7. Dados disponíveis revelam que, embora os índices ,de violência sejam crescentes entre jovens das camadas média, a polícia e a justiça criminal têm como destinatária preferencial a população pobre (Zafuar, 1998).
8. A esse respeito, sugere-se que os membros das equipes elaborem os seus respectivos pareceres, os quais, em reunião coro a Coordenação, podem ser confrontados, discutidos e totalizados, de preferência pelo (a) Coordenador (a) em e, só parecer da equipe técnica. Esse procedimento teto as seguintes vantagens: 1) possibilita a construção e o fortalecimento de equipes interdisciplinares, 2) evita a exposição das testemunhas e 3) dos membros das equipes individualmente (sobretudo, nos casos de pareceres contraditórios).
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Segurança
direito que assiste a testemunhas e vítimas de crimes


Márcia Cristina Gonçalves Conceição

Uma das formas de aferir o grau de democracia de um país é ver como são tratados e respeitados os direitos das minorias.

No Brasil, a consolidação da democracia ainda se depara com alguns desafios oriundos da violação de direitos, atribuídos a resquícios do regime autoritário, bem como resultante do modelo de globalização perverso produtor de exclusão e desigualdade social.

Mesmo após a transição democrática, o uso de força excessiva não foi eliminado, principalmente no que tange à violação dos direitos das minorias e das populações excluídas, desassistidas de direitos civis, políticos e sociais.

A discussão da temática ora abordada, iniciou-se há mais de vinte anos, quando a noção de direitos colocou se no centro do debate político, integrando o processo de democratização do país. Nesse período, adquiriu distintos significados, à medida que se associava a diferentes praticas sociais. Muitos desses significados e práticas representa vão uma novidade na história política recente e uma ampliação da abrangência do que é considerado como fazendo parte dos direitos dos cidadãos na sociedade brasileira.

O alargamento da noção de direitos iniciou-se pela ênfase dada aos direitos políticos violados, associados á tortura e aos presos políticos, até atingir a noção direitos coletivos reivindicados pelos movimentos sociais emergentes, a partir dos anos 70 e, sobretudo, durante os anos 80.

O processo de afirmação da idéia de direitos coletivos deu-se no interior dos movimentos sociais e foi instrumento de organização das camadas populares e de grupos minoritários de forma peculiar, sem precedentes na História Brasileira. Não apenas vários direitos foram qualificados e reconhecidos nesse processo, mas as camadas populares e as minorias foram, através de suas organizações, legitimadas como atores políticos.

Muitas vezes, e em muitos contextos nos últimos anos, as noções de direitos e de direitos humanos confundiram-se, sobretudo porque também entendemos direitos humanos como todos aqueles que afetam as condições de vida dos indivíduos. Assim, direitos humanos encontram-se associados a direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de forma interdependente, inter-relacionada e indivisível.
Nesse leque de abrangência, vamos examinar com maior profundidade o direito à segurança por estar diretamente ligado à assistência e proteção a testemunhas e vítimas de crimes ameaçadas.

Ademais, o direito à segurança e a questão da segurança pública ganharam, nos últimos meses, espaços de debate em todas as esferas da sociedade, provocando do Estado Brasileiro uma resposta em forma de ações e políticas instituídas na área de segurança e justiça.

Para entendermos melhor a questão da segurança como direito humano, vamos problematizar em torno do tema, levantado e argüindo algumas questões que lhe afetam.

Apesar de integrar o art. 3º da Declaração Universal, esse é um direito meio esquecido, pouco citado. Ou, então, apontado em contexto onde o titular dessa segurança pessoal aparece sempre como oponente de regimes ditatoriais.

Por razões até compreensíveis, a segurança pessoal, como direito humano, é sempre a segurança pessoal do preso político, ou mesmo de presos comuns, violados na sua integridade física e moral pela ação dos agentes estatais. Dessa forma, produz-se um curioso esquecimento ode que o cidadão comum tem também o direito à segurança, constantemente ameaçada pelo crescimento impressionante e insuportável dos níveis de criminalidade do país.

Diante do quadro de violência, o Estado é chamado a cumprir a sua obrigação de assegurar e proteger a vida dos indivíduos, porém, muitas vezes, os seus à gentes aparecem como violadores desses direitos, disseminando o medo e a insegurança principalmente no seio da população mais desfavorecida.

Importante ressalvar a especificidade das violações desses direitos, quando elas são perpetradas pelo Estado, posto que são os Estados que se comprometem, mediante pactos internacionais, a respeitar os Direitos Humanos. No momento em que o próprio Estado se coloca no lugar de transgressor, o cidadão fica desamparado, sem poder recorrer a quem o proteja.

Assim, em relação à segurança, estamos diante de formas desiguais de violação, vista pela ótica da sociedade de forma diversa: em referência ao criminoso, a população não espera criminosos respeitadores de direitos, na medida em que é da essência da criminalidade a sua transgressão. O que ela deseja, simplesmente, é que não haja criminosos. Já no que diz respeito ao Estado, a exigência é oposta: a de que ele exista, enquanto respeitador e protetor de direitos.

De uma outra forma, essas duas situações de insegurança se relacionam, a partir do momento em que a promoção do medo, gerado pela delinqüência, que concebe um terreno propício a aceitação das violações perpetradas pelo Estado.

Em resumo, quanto mais as pessoas ficam expostas ao crime, mais elas tenderão a apoiar soluções "de força" para o problema da violência que os atinge, aceitando que a polícia torture suspeitos, pratique execuções sumárias, linchamentos, entre outros.
A história social do Brasil é representada pela existência de privilégios e discriminações. A desigualdade no tratamento dispensado à pessoa estende-se, inclusive, para as questões da garantia da segurança.

Com a transição democrática, as pessoas sentiram-se seguras para ir às ruas exigir direitos, alguns consagrados na Constituição de 1988. Por outro lado, a população favelada, excluída, realizava um movimento inverso, vivia escondida entre o medo dos delinqüentes e o medo dos agentes do Estado. A polícia para essas comunidades não é garantidora da segurança dos moradores.

Prevalece uma sensação de abandono por parte do Estado e de possibilidade de violação por parte dele e de desproteção em relação à ameaça representada pelos delinqüentes.

A inexistência de mecanismos amplamente difundidos de proteção da população alimenta a desconfiança em relação aos agentes policiais do Estado. Essa desconfiança, muitas vezes, impede as pessoas de denunciarem as violências de que são vítimas ou presenciaram. Sem controle por parte da sociedade, não há controle sobre a violência e sobre o arbítrio. A sociedade continua a se perceber indefesa contra esses dois elementos.

A questão da segurança afeta a sociedade brasileira de forma bastante diferenciada, assumindo conotações diversas entre os grupos sociais representados.

Do ponto de vista das elites, a ênfase da necessidade de uma melhor segurança caminha mia direção de unia discriminação social, estabelecendo uma privatização da segurança.

Tentam, assim, criar mecanismos e estratégias de segurança próprios, abandonam os espaços públicos que antes ocupavam mias cidades para viverem em condomínios privados, shopping centers, linhas privadas de ônibus, escola e serviços de saúde particulares, sempre guardados por muros, equipamentos eletrônicos e vigilância privada. Criam espaços protegidos da exclusão, onde os iguais sintam-se seguros.

Nesse movimento das elites, percebe-se algo se produzindo. Há uma tentativa de criar novas alternativas de ordem, em que se mantenham, de outro modo, os privilégios, já que o Estado não parece estar cumprindo esse papel.

O interessante nisso é que o Estado parece estar sendo deixado relativamente de fora desse processo. Pede-se que seja duro, mas, por via das dúvidas, vai se criando urna ordem paralela, pelo menos para a vida cotidiana. Levado ao limite, esse mecanismo deixará a policia e a segurança pública tendo os pobres como clientela exclusiva.

A noção de que o Estado cuidará dos pobres e atenderá às suas reivindicações, e de que os ricos cuidarão de si mesmos e criarão a sua própria ordem diferenciada, conduz a um caminho onde ter segurança vira sinônimo de exclusão, de distinção e de status.

Assim sendo, a sensação de segurança das elites passa pela distância social, pela manutenção de privilégios e de uma ordem excludente.
Evidente, que para a construção da tão almejada paz social, temos que desconstruir idéias de segregação, manutenção de privilégios que marginalizam grande parte da população do exercício de direitos.

O Plano Nacional de Direitos Humanos e o recente Plano Nacional de Segurança vêm avançando no sentido de melhorar o padrão de segurança das pessoas. Nos últimos 15 anos, com a ajuda do Congresso Nacional, foram aprovadas mais de 15 leis que visam a melhorar o sistema de proteção nacional dos Direitos Humanos, amparando direitos de minorias, tipificando crimes como o de tortura entre outros. Integra esse elenco a lei 9.807 de 13 de julho de 1999, promulgada dentro dos prognósticos idealizados por seus precursores.
Essa lei, conquista da sociedade, resulta de exaustivo processo de discussão e de práticas já desenvolvidas dentro do movimento popular organizado. Representa o momento em que o Estado começa a absorver mecanismos alternativos, permeados pela intervenção concreta da sociedade civil em políticas públicas de segurança e justiça.

Da forma como vem sendo implantado no Brasil, mesmo na perspectiva de construção de um Sistema Nacional de Proteção, o Programa PROVITA não se constitui uma fórmula pronta e acabada, copiada e repassada para as entidades gestoras e as equipes responsáveis pela execução, mas um processo de cidadania em produção, com caráter de programa de Estado, para ser desenvolvido cm nome e por conta dos interesses da sociedade.

A preocupação do Programa, além da garantia da segurança, passa pela responsabilidade cm absorver testemunhas, não apenas enquanto instrumento de prova, mas, sobretudo, considerando a possibilidade histórica de exercerem um papel político determinante mia construção da sua cidadania e na redução da impunidade.

Dentro dessa ótica, é interessante proceder urna reflexão quanto aos parâmetros que norteiam o Provita, construídos a partir de duas linhas de princípios: uma de ordem ético-filosófica, outra, de caráter político jurídico.

Princípios ético-filosóficos do Provita poderiam ser entendidos enquanto prognósticos de (re) construção da cidadania; de possibilidades concretas de exercício de direito de denunciar práticas de violência, sem riscos para a vida da testemunha, da vítima ou familiares; de perspectiva positiva de redução da impunidade e da criminalidade, pela remoção do medo de testemunham. Ético-filosóficos seriam ainda princípios que correspondem ao resgate dos valores pessoais e morais desconstituídos pela política de (in) segurança dos poderes públicos, e, ainda, à (re) condução da sociedade civil ao debate sobre a (re) formulação de políticas públicas viabilizadoras da construção da sociedade justa, igual e solidária, de que trata a Constituição Federal.

Político-jurídicos, por sua vez, seriam princípios garantidores do estado democrático de direito, oportunizando à Justiça, de modo geral, contam com depoimentos relevantes para a obtenção de resultados positivos para a segurança da sociedade e à justiça criminal, especificamente, assegurar um testemunho qualificado, produzido por uma prova testemunhal valorizada, fortalecida capaz de influir efetivamente no resultado do julgamento, condenando os agentes da violência.

Dentro desses princípios, também se incluiria a ação afirmativa que a possibilidade dessa intervenção em áreas herméticas, cristalizadas nos poderes de Estado, quais sejam Justiça e Segurança.

Por fim, não se pode perder de vista que o compromisso com a segurança e a conseqüente promoção e garantia dos direitos das pessoas vítimas e testemunhas de crimes têm, por via oblíqua, a sociedade como destinatária maior dos objetivos de uma proposta de tal importância política.

O Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas nos moldes do Provita, como é executado no Brasil, não revela incluir, em seus conteúdos, fórmulas solucionado, mas ou quixotescas do término dos conflitos sociais, da impunidade e da criminalidade. Trata-se de mecanismo experimentado nos laboratórios vivos dos movimentos sociais e apresentado aos poderes públicos, enquanto um caminho alternativo que se junta a outras estratégias de lutas pelos direitos do cidadão. O que deve sem perseguido, isso sim, é um modelo político econômico capaz de remover as desigualdades sociais, distribuindo a riqueza concentrada em poder de um número cada vez menor de pessoas, permitindo aos excluídos e periféricos do sistema e candidatos em potencial de programas de proteção, o sonho de serem, também eles, incluídos no processo de justiça social por que tanto sonham os militantes dos direitos humanos no Brasil.


Texto apresentado no Encontro Nacional de Procuradores da República, Procuradores do Trabalho, Promotores de justiça e Defensores Públicos, em Brasília, de 09 a 11 de agosto de 2001.
*Professora de História e Advogada do Provita/AATR BA.

Referências Bibliográficas

*CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Direitos Humanos ou "Privilégio de Bandidos"? Desventuras da Democratização Brasileira: Novos Estudos CEBRAP. Nº 30, julho de 1991 pp 162-174.

*CARDIA, Nancy. O medo da Polícia e as graves violações dos direitos humanos. Tempo Social:Rev. Sociol. USP. São Paulo, maio de 1977.

*MESQUITA NETO, Paulo de. A Construção dos Direitos Humanos no Brasil (1975-2000) Núcleo de Estudos da Violência - USP. Texto apresentado no Seminário Internacional de promoção e proteção dos Direitos Humanos, junho de 2000.

*OLIVEIRA, Luciano. Segurança: um direito humano para ser levado à sério - Revista de Direitos Humanos/GAJOP.

*PAIXÃO, Antônio Luís. Crime, controle social e consolidação da democracia: as metáforas da cidadania.

*PIOVESAN, Flávia. Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de proteção dos Direitos Humanos. Revista de Direitos Humanos/GAJOP.

*RELATÓRIO SOBRE A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL. Organização dos estados Americanos ,Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1977.

*VELOSO, Marília Lomanto. Perspectiva de um Testemunho Qualificado. Revista de Direitos Humanos/GAJOP.

 

PROVITA: uma proposta de política pública

Valdênia Brito Monteiro

O Programa de Proteção a Testemunhas, Familiares e Vítimas da Violência - PROVITA, surge em 1996 como iniciativa do Gabinete de Assessoria Jurídica as Organizações Populares - Gajop, entidade de direitos humanos que trabalha com o direito à segurança e à justiça, preocupada com a questão da impunidade.

Em 1998,0 Ministério da Justiça financia um projeto com o Gajop com o intuito de sensibilizar outros Estados para a implantação do PROVITA - a partir do modelo criado-, tendo em 1998 sido implantado para os Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. A partir daí, outros estados incorporaram a idéia do PROVITA, sendo que se encontra hoje implantado em 10 Estados, e mais outros em fase de expansão. Os
Estados que têm o programa funcionando são: Pernambuco- PE, Bahia BA, Espírito Santo - ES, Rio de Janeiro - RJ, São Paulo - SP, Pará - PA, Mato Grosso do Sul - MS, Goiás - GO, Acre - AC e Minas Gerais - MG.

O grande desafio institucional sempre foi como formular uma proposta de política pública que contribuísse para controlar a criminalidade num quadro social e político marcado pela impunidade e pela banalização da violência.

A criação de um programa de proteção a testemunhas foi uma das formas encontradas para diminuir a impunidade, tendo em vista a criminalidade presente no cotidiano da sociedade e, diante de vários testemunhos que expressavam o medo de denunciar as arbitrariedades, principalmente aquelas cometidas por agentes do Estado.

O PROVITA, sem dúvida, representa uma das grandes experiências que o Brasil tem de formulação de política pública, em que a sociedade civil e o Estado estão juntos, sem ser na esfera de Conselho.

E importante apresentar essa experiência, porque, quem trabalha na perspectiva da efetivação dos direitos humanos tem que ter em mente a política pública. Direito e política pública têm uma grande ligação. "No Brasil, no entanto, essa questão é, até certo ponto, estranha ao direito."3 O sistema jurídico americano é mais integrado com os temas de políticas públicas. Nesse sentido, vale a menção entre a norma e as políticas públicas:

"A categoria das normas, como produção legislativa, é tradicionalmente definida como associação à generalidade e à abstração. Por outro lado, as políticas públicas atuam de forma complementar, preenchendo os espaços normativos e concretizando os princípios e regras, com vistas a objetivos determinados. As políticas, diferentemente das leis, não são gerais e abstratas, mas,ao contrário, são forjadas para a realização de objetivos determinados"'

O Provita foi um exercício para o Gajop, no sentido do que significa urna ação tão complexa que é proteger testemunhas a partir da concepção de direitos humanos e, ao mesmo tempo, demandar para se conseguir urna série de garantias e medidas concretas do Estado. Implementar o PROVITA, na perspectiva de uma política pública viável e influenciar na criação de uma legislação específica, não foram tarefas fáceis.
Dois desafios estavam postos:
O primeiro a ser enfrentado foi como pensar uma proposta de política pública com o Estado que tem uma quantidade de agentes estatais violadores de direitos humanos, isto é, a ambivalência da imagem e papel do Estado na relação direitos humanos-impunidade-violência.

"Por um lado, havia o reconhecimento da inevitabilidade e indispensabilidade da participação do Estado num programa desse porte. Por outro, a sua presença apontava tensões, uma vez que este 'Estado', concebido na sua complexidade de organizações, também produz violências. As análises sobre violência neste país não se realizam sem incluir o Estado como um dos agentes desencadeadores."5

O segundo desafio foi o da "parceria ou interlocução" com o Estado, sem o risco da cooptação.

"O 'fantasma' da cooptação exigia vigilância permanente dos representantes da sociedade civil, e, no outro lado, a resistência de alguns setores governamentais às ingerências capazes de desestruturar os vícios centralizadores e autoritários que ainda sustentam o funcionamento de um grande número de órgãos públicos."5

É preciso muita maturidade para se construir um diálogo em que os atores envolvidos tenham a capacidade de entender o verdadeiro significado da esfera pública. Esta, como espaço onde diversos atores com suas diferentes representações e interesses se confrontam, interagem, construindo novas relações sociais. A esfera pública não estatal "reduz a onipotência do Estado e aumenta o espaço decisório da sociedade civil."7

Diante do esforço de fazer do PROVITA uma política pública foi necessário construir uma estratégia capaz de fazer com que o Estado assumisse, sem preconceito, urna proposta vinda da sociedade civil. Vale ressaltar que "há ainda um caminho a ser percorrido para que o Estado reconheça de fato a sociedade civil como interlocutora hábil a exercer seu papel nas decisões estatais, na formulação e gestão partilhada das políticas sociais."" A relação entre Estado e sociedade civil é contraditória e mesclada de conflito, mas "se acabar a contradição, acaba a própria participação e a relação democrática entre Estado e sociedade. Temos que conviver com essa contradição."9

Resolvidos os desafios e tensões no sentido de realizar unia interlocução com o Estado, passou-se à discussão com este sobre os objetivos, conteúdos, estratégias e prioridades do Programa.

Sempre que se fala em formulação de políticas públicas, muitas vezes esquecemos que são necessárias intervenções qualificas e isso requer o acesso a informações; conhecimento dos planos e programas do governo, das estruturas burocráticas e de mecanismos legais para o setor; definição de plano de trabalho; pensamento articulado; ser um canal de diálogo com a sociedade civil, entre outros pontos.

O modelo PROVITA foi planejado. Ao criá-lo, foram pensadas ações propositivas e posições pró-ativas. Eis alguns exemplos: a) buscou-se, no primeiro momento, obter informações sobre a problemática do medo de denunciar da população e de agentes envolvidos com a criminalidade x impunidade; b) aprofundaram-se os estudos sobre proteção a testemunhas, inclusive indo "in loco" aos países que têm o programa (Itália, Inglaterra, Estados Unidos e Holanda); c) construiu-se uma proposta levando em consideração a realidade brasileira: d) buscou-se fortalecer a intervenção e o diálogo junto à sociedade civil sobre o PROVITA, fazendo parceria com o Movimento Nacional de Direitos Humanos - MNDH; e)pensou-se unia estratégia para a mídia, no seu tido de desencadear debates institucionais sobre a questão da impunidade neste país, sempre colocando a questão do sigilo como indispensável a um programa de proteção; 1) produziu-se material informativo e formativo como forma de criar um "marketing social" numa contribuição à causa dos direitos humanos; g) fomentou-se a discussão entre representantes de grupos sociais locais e de governos estaduais em torno da definição e implementação do PROVITA; li) incentivaram-se os Estados-membros e a União a adotarem leis protetoras e estabelecerem sistemas de proteção a testemunhas; i) criou-se uni modelo de monitoramento para selecionar, treinam e acompanhar os trabalhos dos técnicos dos PROVITA; j) criou-se um matinal de procedimentos para o Programa; 1) fez-se 'lobby' legislativo; nu) discutiu-se a dotação orçamentária para o programa, entre outros.

A Lei 9.807/99

O que se vai perceber é que a concepção da Lei nº 9.807/99, que "estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas", é fruto da experiência concreta, construída em parceria com a sociedade civil. A Lei 9.807/99 é o retrato fiel do modelo criado, no que se refere à parceria com entidades não governamentais; e do conceito de vítimas, a partir da Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vitimas de Delitos e de Abuso de Poder, resolução da Assembléia Geral da ONU nº 40/34 de novembro de 1985 a qual reconhece que na 'expressão 'vítima' estão incluídos também, quando apropriado, os familiares ou pessoas dependentes que tenham relação imediata com a vítima e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir para dar assistência à vítima em perigo ou para prevenir a ação danificadora"; sobre o ingresso das vítimas e testemunhas no Programa; a questão da admissão da vítima no programa ou exclusão precedida de consulta ao Ministério Público, a criação de um Conselho Deliberativo, como órgão definidor sobre o ingresso do protegido no programa ou sua exclusão, bem como das providências necessárias ao cumprimento do Programa, entre outros.

É importante fazer a retrospectiva da experiência para mostrar que rima lei que se funda numa ação concreta e consolidada consegue sua aplicabilidade mais facilmente. Não se quer dizer com isso que a norma não tenha lacunas ou que o PROVITA não precise de ajustes. O que se quer afirmar é a estreita relação entre direitos humanos c políticas publicas, bem como que estas "funcionam como instrumento de aglutinação de interesses em torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma coletividade de interesses."'10

O PROVITA e sua contribuição para os direitos humanos

Se, por muito tempo, a vítima foi considerada esquecida, ou corno dizem alguns autores, viveu um grande ostracismo, pode- se afirmar que, hoje, ela vive a sua descoberta, o seu protagonismo. A preocupação com a vítima dá-se a partir das atrocidades da II Guerra Mundial, período em que vários estudos surgem sobre o tema. Os escritos e protestos contra as torturas, execuções sumárias, degradação, entre outros, realizados principalmente pelos movimentos de direitos humanos trouxeram à tona a questão da vítima como protagonista.

O final da Segunda Guerra Mundial veio demarcar uma nova era para a humanidade, a partir da Declaração Uruversal de Direitos Humanos, em 1948. "Toda essa nova e complexa realidade, nascida com o pós-guerra, colocou na ordem do dia urna série de novos anseios e demandas dos novos movimentos sociais."

O PROVITA, sob as bases multidisciplinares é um grande referencial para os que se preocupam com o estudo da vítima, da criminalidade e do sistema criminal, a partir da concepção dos direitos humanos.

A estigmatização do sistema criminal às vítimas tem que ser modificada. Vera Regina P. de Andrade diz que o controle social se faz de forma seletiva e estigmatizante contra certas pessoas, incluindo-se, aí tanto autores como vítimas. Expressa Etigenio Zaffaroni:12

"Os indivíduos estigmatizados e estereotipados são mais vulneráveis à ação seletiva do sistema penal, servindo de instrumento para que esse possa justificar a seleção e não o cometimento do injusto, já que há muitíssimos mais injustos penais iguais e piores que deixam o sistema penal indiferente. Essa posição ou estado de vulnerabilidade 'é predominantemente social (condicionada socialmente) a uma classe, grupo ou perigo que a pessoa corre só por pertencer a uma classe, grupo, estrato social, minoria, etc, sempre mais ou menos amplo, como também por se encaixar em um estereótipo, devido às características que a pessoa recebeu'."

É possível o respeito aos direitos humanos ao tratar a problemática da vítima. O PROVITA traz na sua filosofia a questão da dignidade humana; essa caminha passo a passo com o exercício dos direitos humanos. Como diz o mestre Afonso da Silva:

"A dignidade da pessoa humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e como democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificam o homem, ela se revela como o seu valor que dimensiona e humaniza." 13

Na construção do respeito aos direitos humanos e da contribuição acadêmica sobre o estudo da vítima, o PROVITA tem colaborado:

o "Para pautar o debate dos direitos humanos ro Brasil, de forma qualificada, e o de estar formando uma rede de solidariedade de entidades, imperceptível ao público condição para a sua existência que comungam um projeto ético-político e que pode ter um importante papel não só na difusão de valores públicos e cooperativos, mas também no combate à Vitima da violência e da impunidade."14

o "Para o resgate da cidadania da vítima e difusão de valores solidários. A cidadania democrática entendida como "um conjunto de direitos e deveres válidos para todos aliado à concepção de igualdade não aritmética, não mecânica, mas baseada no reconhecimento das desigualdades, de que se deve tratar desigualmente os desiguais."15

o "Para a superação do projeto positivista, diluindo as fronteiras dos especialismos sem perda da identidade profissional, o que significa o resgate da dimensão da totalidade humana e, sobretudo, a superação de um modelo de sociedade autoritária e opressora, e pelo viés da ação crítica transformada." 16
* Para reforçar a importância do princípio do devido processo legal que remonta ao art XI, n0 1 da Declaração dos Direitos cio Homem e, também disciplinado no texto Constitucional brasileiro no art. 5º, LIV e LV., que expressa que todo acusado tem o direito de ser presumido inocente, até se prove de acordo com a lei, em julgamento público e assegurando as garantias necessárias a sua defesa.

o Para repensar o sistema criminal, hoje como incapaz de ser resolutório e preventivo.

o Para pressionar a burocracia cio Estado (judiciário, Ministério Público, Polícia, etc), que dificulta o acesso aos serviços e leva à impunidade.

o Para aprova testemunhal.

o Para o testemunho qualificado.

o Para criar uma estratégia de como trabalhar com o perfil do réu colaborador, entre outras.

Por fim, a iniciativa ,hoje bem-sucedida, do PROVITA, representa a luta das entidades de direitos humanos que apostaram no programa e estão todas unidas no sentido de romper com o ciclo da impunidade neste país.


Obs:
1 Texto apresentado em 25/6/2007, no Seminário sobre Vitimas de Violência, Impunidade e os Direitos / Humanos, promovido pelo fórum Cearense de Direitos Humanos.
2. Advogada do Gajop e mestranda em Direito pela UFPE.
3. BLJCCI, Maria Paula Dallati et alli. Direitos Humanos e polícias públicas. São Paulo, Pólis, 2001. P.6.
4.Idem.p. 11.
5. MORAES, Aparecida Fonseca. Relatório de avaliação do PROVITA (Programa de proteção a testemunhas, familiares e vítimas da violência. Rio de janeiro, 1998. P. 17
6. idem. p. 18.
7. RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da construção democrática. São Paulo:
Cortez, 1998. p. 81.
8. ARZABE. Patrícia Helena Massa. Conselho de direitos e fomulação de políticas públicas. In Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo, Pólis, 2001. P. 41
9. DANIEL Celso. Conselhos, esfera pública e co-gestão. ln: Conselhos gestores de políticas públicas. CARVALHO, Maria do Carmo A. A e TEIXEIRA, Ana Claudia C. (org). São Paulo: Polis, 2000. P. 130.
10. BUCCI, Maria Paula Dallri et alli. Op. cit. p. 13.
11. DORNEILLES. João Ricardo W. Sobre a fundamentação histórica e filosófica dos direitos Humanos. Direitos Humanos/Gajop. Recife. Ed. Especial. p.52, nov./dez. 1998.
12. ZAFIZARONI, Eugênio. El sistema penal en los paises da América Latina.In Araújo Jr, João Marcelo de.(Org) Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de janeiro: Revan, 1997. p. 221-236.
13. SILVA, José Afonso. Apud. APOLINÂRIO, Heliane. História e fundamentos dos direitos humanos. In: Educação para a cidadania/Cajop. Livro texto: A policia protetora dos Direitos humanos. Recife, 2000. P. 16.
14.ALMEIDA, Sucly SOUZO. PROVI TA: ética e instilucionalidade. Conferência proferida em 11/11/2001,no Seminário Nacional de Assistência a Testemunhas e Vitimas Ameaçadas, organizado pelo Gajop Recife, p. 9-1O.
15. BENEVIDES, Maria Vitória. In: Mínimos de cidadania: ações afirmativas de enfrentamento à exclusão social. Núcleo de Estudo de Seguridade e Assistência Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 1999.p. 14.
16. 'SILVA, Maria Chefe et alli. O modelo brasileiro: um desafio multidisciplinar. Conferência pro ferida em 11/11/2001, no II! Seminário Nacional de Assistência a Testemunhas e Vítimas Ameaçadas, organizado pelo Gajop Recife, p. 3.
Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Suely Souza. PROVITA: ótica e instilucionalidade. Conferência proferida em 1 1/1 1/2001, no III Seminário Nacional de Assistência a Testemunhas e Vitimas Ameaçadas, organizado pelo Gajop. Recife.

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BREVES CONSIDERÇÕES SOBRE O PROGRAMA DE
PRGTEÇÃO A VÍTIMAS E TESTEMUNHAS AMEAÇADAS

RONALDO ANDRADE,
Promotor de Justiça e Gerente
de Acompanhamento do PROVITA/AM


A proteção a testemunhas ameaçadas constitui política pública de combate à impunidade e colaboração com a justiça criminal, oficializada com a promulgação da Lei Federal nº 9.807, de 13/07/99, que define os contornos gerais do programa federal, vinculado à Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, bem como dos programas estaduais, normatizados pelos próprios decretos estaduais (no Estado do Amazonas, pelo ATO PCJ nº 032/2001).

O modelo nacional de PROVITA, adotado pela maioria (e não a totalidade) dos Estados que já o implantaram, considerado em visão panorâmica, tem quatro eixos de trabalho independentes e interligados: 1) o Conselho Deliberativo, que eventualmente pode incluir uma Diretoria Executiva e um Conselho Fiscal; 2) o Órgão Executor, que é uma das entidades integrantes do Conselho Deliberativo, escolhida de acordo com a legislação local para o exercício das funções operacionais do Programa; 3) a Equipe Técnica Multidisciplinar, contratada pelo Órgão Executor, mediante processo de seleção conduzido pela Central Nacional do Sistema de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, para execução direta das ações de proteção; e, 4) a Rede Voluntária de Proteção, integrada por organizações voluntárias da sociedade civil que dão suporte às ações de proteção.

O Programa Federal, por seu turno, conta ainda com uma Gerência de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (GAVTA), que tem basicamente as funções de agente promotor da consolidação e aprimoramento do Sistema Nacional de Proteção a Testemunhas, e da criação e implementação de Centros de Apoio a Vitimas de Violência e do Serviço de Proteção ao Depoente Especial.

O Estado do Amazonas,, Através do Ministério Público, considerando a autonomia de organização dos Estados quanto ao modelo de funcionamento a ser adotado, optou, por uma estrutura mista, inserindo uma Gerência de Acompanhamento do Programa da estrutura do PROVITA/AM, com funções similares, guardadas as devidas proporções, às da GAVTA, e explicitadas no art. 6º do ATO PGJ n.0 032/01.

Ademais, tendo em vista que o PROVITA/AM consubstancia uma política institucional do Ministério Público e não uma Política Pública do governo estadual, mercê da falta de compromisso deste com 3S Direitos Humanos, o Programa tem as tarefas de implementação e de administração compartilhadas entre a Procuradoria-Geral de Justiça, denominada na estrutura do PROVITA/AM de "Instituição Executora", que nesse passo age através da Gerência de Acompanhamento do Programa, e o Órgão Executor, denominado aqui de "Entidade Operacional". Por seu turno, a direção politico-administrativo-financeira do Programa é compartilhada entre a mesma Procuradoria-Geral de Justiça (Instituição Executora), que nesse mister age através de seu representante no Conselho Deliberativo, composto de representantes de Órgãos do Estado e da Sociedade Civil, e o referido órgão colegiado.

Nesse passo, tanto as tarefas operacionais como as competências inerentes ao poder de direção política do Programa, são perfeitamente delimitadas nos diversos artigos do ATO PGJ N0 032/2001, inexistindo superposição de funções ou conflitos de atribuição entre os diversos órgãos envolvidos no Programa.

Assim, no modelo adotado pelo Estado do Amazonas (leia-se Ministério Público), a responsabilidade pela gestão e execução do PROVITA é compartilhada por seis parceiros principais, todos dotados de autonomia para a realização das tarefas que lhes são próprias e peculiares, e todos interligados pela causa comum do combate à impunidade e efetividade da proteção às testemunhas ameaçadas. As competências de cada parceiro são delimitadas pelo ATO PGJ Nº. 032/2001, que regulamenta o PROVITA no âmbito do Estado do Amazonas.

Destarte, ao Conselho Deliberativo cabe dirigir o PROVITA, compartilhado esse poder de direção com a Instituição Executora, a Procuradoria-Geral de justiça, estando compreendidos nestes poderes de direção: a gestão e o acompanhamento financeiro o orçamentário do programa; a decisão pela inclusão OU exclusão de beneficiários; a indicação e eventual substituição do Órgão Executor, na forma do ATO PGJ n0 332/2001 e de seu Regimento Interno; e a promoção da articulação política e institucional para o reforço dos apoios, bem como para a expansão e consolidação do Programa.

Portanto, percebe-se que o amplo espectro de atribuições do Conselho deliberativo conduz a compreensão de que este determina a direção política geral do programa, amparado na ampla legitimidade de sua composição, que reúne representantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil (AOB), da sociedade civil organizada, das Universidades e do Poder Executivo estadual.

Outro parceiro fundamental do PROVITA é o seu Órgão Executor, no Amazonas denominado de Entidade Operacional, aprovada e supervisionada pelo Conselho Deliberativo e pela Instituição Executora (a PGJ/AM), cabendo-lhe articular a formação da Rede Voluntária de Proteção em nível estadual, acompanhar os procedimentos relacionados aos beneficiários do programa, e também supervisionar o atendimento prestado pela Equipe Técnica disciplinar e pelos integrantes da Rede Voluntária de Proteção, além de outras tarefas não menos importantes.

Além de cumprir as tarefas supra referidas, a Entidade Operacional também colabora com a operacionalização do PROVITA através da contratação e remuneração da Equipe Técnica Multidisciplinar (observando as diretrizes da Instituição executora e do Conselho Deliberativo), utilizando procedimentos mais céleres e desburocratizados do que os exigidos para as contratações e parcerias realizadas pelas entidades do poder público.

Ao lado dos parceiros já referidos (o Conselho Deliberativo, a Instituição Executora e a Entidade Operacional, o sistema PROVITA conta também com a participação da Equipe Técnica Multidisciplinar, contratada e remunerada pela Entidade Operacional e incumbida especialmente de fazer a triagem dos casos encaminhados e de cumprir as medidas de proteção determinadas pelo Conselho Deliberativo.

Como parceria na execução do programa, e tendo a missão de bem cumprir as tarefas retro elenoadas a Equipe Técnica tem, em contrapartida, coordenação e atuação independentes, inclusive para salvaguardar o sigilo necessário à segurança e eficiência do programa.

Ainda como parceiro deste sistema compartilhado de responsabilidade e tarefas, há também a participação da Rede Voluntária de Proteção, que é articulada pela Entidade Operacional e peia Gerência de Acompanhamento do Programa em colaboração com os demais parceiros do mesmo, que destina-se a prover hospedagem, acolhimento e assistência aos beneficiários do programa, tendo o dever de informar regularmente à Entidade Operacional sobre o atendimento prestado na Rede.

Finalizando, o PROVITA/AM conta em sua estrutura com a Gerência de Acompanhamento do Programa exercida por um membro do Ministério Público Estadual, designado pelo Procurador-Geral de Justiça, com funções de ligação entre os setores público e privado do sistema, de contínuo aprimoramento e fortalecimento do Programa, de atendimento inicial dos candidatos à proteção e de gerenciamento da proteção aos depoentes especiais, além de outras não menos importantes explicitadas no já mencionado art. 6º do ATO PGJ nº 032/01.

Vê-se, pois, que o modelo de Programa de Proteção adotado no Estado do Amazonas é singular, por ter um forte componente público, aqui caracterizado pela marcante presença do Ministério Público.

No entanto, tal modelo não diverge dos demais programas estaduais e do programa federal, pois se assenta em princípios básicos comuns: o sigilo, o comportamento de tarefas, a inserção dos protegidos em uma rede nacional, a participação direta da Sociedade Civil, tanto em nível de direção, como em nível de execução das ações de proteção.

Na verdade como principal interessado na preservação da prova testemunhal, por um lado, e na garantia à vida das vitimas e das testemunhas, por outro, o Ministério Público é detentor de natural vocação pra o gerenciamento em nível nacional dos Programas de Proteção, sem prejuízo da sempre necessária utilização da Rede Voluntária de Proteção.

Por isso, o PROVITA/AM não deve ser visto como algo "inusitado" ou "esdrúxulo", mesmo porque a Lei n.º 9.807/99 não impôs a adoção de um determinado modelo de proteção ou de uma estrutura padrão, mas como marco inicial de uma tendência que se firma cada vez mais no cenário nacional, que tem no gerenciamento dos programas de proteção a vítimas e testemunhas mais uma função institucional do Ministério Público.

Manaus, AM, 10 de Setembro de 2001.

 

DELAÇÃO PREMIADA

João Bosco Sá Valente
Procurador de Justiça

A DELAÇÃO PREMIADA COMO CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA:


O art. 7º da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), acrescentou ao art.159 do CPB (Extorsão Mediante Seqüestro) § 4º que prevê a delação premiada, nos seguintes termos:
"§ 4º - Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o co-autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços".

Posteriormente, a redação desse parágrafo foi alterada pela Lei nº 9.269, de 02.04.96, como segue:
"§ 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar á autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços".

Constata-se que se trata de novatio legis in mellius - que tem efeito retroativo - pois, antes o denunciante só fazia jus ao "prêmio" se o crime houvesse sido cometido por quadrilha ou bando (o que exigia um mínimo de quatro pessoas e o ânimo de estabilidade ou permanência entre os agentes), sendo que atualmente é bastante o concurso eventual de agentes (número mínimo de duas pessoas, não se exigindo o ânimo de estabilidade)

O art.8º da Lei nº 8.072/90 contempla no seu parágrafo único outra circunstância ensejadora da mitigação da penalidade, in verbis: "O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terão a pena reduzida de um a dois terços


A DELAÇÃO PREMIADA NA LEI Nº 9.034/95 ( REPRESSÃO AO CRIME ORGANIZADO)

O art.6º da Lei nº 9.034/95 prevê: "Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria".

Requisitos para a redução da pena:

Conceitualmente, em função do explicito teor da regra, tem-se que a dita redução apenas se efetivará, em primeiro lugar, caso o colaborador seja, não só co-autor como quem figurar como partícipe da conduta delitiva.
Em segundo lugar, exige-se, quanto ao resultado, que a colaboração seja eficaz, no sentido de que contribua, de fato, para a libertação do seqüestrado, guardando-se um nexo de causalidade com esse evento, na qualidade de conditio sine qua non para a sua ocorrência.
De forma impl[icita, há quem vislumbre, o objetivo de viabilizar o desmantelamento da quadrilha.
Em terceiro lugar, a denúncia deve ser dirigida à autoridade policial, desserviodo, pois, para a incidência da norma, aquela, v.g. formulada a um repórter que exerça o jornalismo investigativo, na área criminal.

Já no âmbito da Lei nº 9.034/95, a redução da pena somente se viabilizará se a colaboração do agente for espontânea, ou seja, por sua própria iniciativa, e se levar ao efetivo esclarecimento da infração e a descoberta da autoria.


A DELAÇÃO PREMIADA COMO CAUSA DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE E DE DIMINUIÇÃO DE PENA NA LEI Nº 9.807/99

Todos os dispositivos até aqui estudados referem-se, invariavelmente, sobre causas de redução de pena, porém, convém lembrar que atualmente é possível se falar em impunidade, haja vista que a Lei nº 9.807. de 13.06.99 (Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas), no seu art.13, criou o perdão judicial para os réus colaboradores, nos seguintes termos:

"Art.13 - Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente coma investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;

II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.



Parágrafo único - A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

Prevê, ainda, a referida lei, uma causa de diminuição de pena:

Art.14 - O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.

Diante desses novos dispositivos legais (arts.13 e 14 da Lei nº 9.807/99), parece-nos estar revogado o § 4º do art.159 do CPB, não tendo, no entanto sido observada a Lei Complementar nº 95/98, que no seu art.9º determina que a revogação deve ser expressa.

 

Reflexões sobre a experiência do Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas no atendimento a estrangeiros

Ludmila Cerqueira Correia


Inicialmente, antes de compartilhar com todos aqui presentes algumas reflexões sobre o tema proposto, gostaria de agradecer o convite para participar desta Mesa nesta VII Reunião Nacional dos Conselhos Deliberativos dos Programas de Proteção, importante espaço de debate para o aperfeiçoamento do Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas. Assim, cumprimento a todos na pessoa do Dr. Dermi Azevedo, presidente do Conselho Deliberativo do PROVITA-SP e do Colégio Nacional de Presidentes de Conselhos Deliberativos dos Programas de Proteção .

Gostaria de destacar que este tema esteve e está presente no cotidiano do Programa Federal, tendo em vista o encaminhamento de casos envolvendo estrangeiros ao Programa. Assim, trago algumas reflexões sobre essa prática e sobre a legislação pertinente, fruto de estudos e pesquisa junto ao Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça e ao Comitê Nacional para Refugiados - CONARE, e de discussões acerca dos casos no âmbito da Coordenação-Geral de Proteção a Testemunhas - CGPT e do Conselho Deliberativo do Programa Federal.

Desse modo, a apresentação deste tema está dividida em duas partes, de acordo com os casos demandados: a) estrangeiros que denunciaram a ocorrência de crimes no seu país de origem e, mesmo, no Brasil, sentem-se ameaçados ou em situação de risco; e b) estrangeiros que presenciaram ou participaram de crimes ocorridos no Brasil.

No primeiro caso, trata-se de estrangeiros que foram testemunhas e denunciaram a prática de crimes no seu país de origem, e, por conta do risco pelo qual passavam, saíram do país e deslocaram-se para outros, como o Brasil.

Nesse sentido, cabe colocar que a Lei nº 9.807/99 nasceu da necessidade de ampliação do foco de atenção do Estado Brasileiro para os vários sujeitos envolvidos no processo penal e de instituir o sistema de proteção como mecanismo de auxílio no combate à criminalidade e na redução da violência.

Note-se que a Lei, no seu artigo 1º, refere-se tão somente às vítimas ou testemunhas que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça "em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal". Desse modo, não comportam ingresso nos programas especiais de proteção as pessoas sujeitas a ameaça ou coação motivada por quaisquer outros fatores.

É válido destacar que os casos que não preencherem esses requisitos não estão privados de eventuais medidas de proteção que se façam necessárias, corroborando a tese de que a Lei nº 9.807/99 não alterou o dever constitucional dos órgãos de segurança pública de garantir a preservação da incolumidade física das pessoas (art. 144, da Constituição Federal). O artigo 2º, § 2º, in fine, da Lei deixa claro que os indivíduos que não se adequarem às hipóteses de inclusão no programa, em que pese se encontrarem em situação de risco, receberão dos órgãos de segurança pública o atendimento necessário a garantir a sua proteção.

Diante do exposto, se é certo que determinadas hipóteses específicas de proteção passaram a contar, com a edição da Lei nº 9.807/99, com o apoio complementar dos programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, o dever de zelar pela preservação da incolumidade das pessoas, garantindo a inviolabilidade do direito à vida, permanece a cargo dos órgãos constitucionais de segurança pública.

Tomemos o caso concreto, no qual o estrangeiro se encontrava no Brasil com visto de turista, segundo a Polícia Federal, e alegava, em resumo, que denunciou crimes cometidos pelo Governo de seu país de origem contra os Direitos Humanos nos anos 90, e, a partir daí, passou a ser perseguido e ameaçado, indo, então para a Bolívia, onde solicitou refúgio, e, da Bolívia veio para ao Brasil, sendo orientado a procurar a Cáritas Arquidiocesana.

Tal estrangeiro foi ouvido pela Polícia Federal quando chegou ao Brasil, e, assim, solicitou refúgio. Após a sua oitiva, foi encaminhado à Cáritas Arquidiocesana de São Paulo para dar prosseguimento ao procedimento de solicitação de refúgio. Na Cáritas, foi entrevistado e preencheu alguns dados. Depois, procurou o Centro Pastoral dos Migrantes Nossa Senhora da Paz, o qual solicitou ao PROVITA-SP análise da possibilidade de inclusão do referido estrangeiro no Programa. Este, por sua vez, entendendo que não tinha atribuição para o caso, o encaminhou para análise do Programa Federal.

De acordo com a documentação enviada, a Coordenação-Geral de Proteção a Testemunhas entendeu que o caso não atendia aos requisitos de ingresso no Programa, previstos na Lei nº 9.807/99, tendo em vista que o interessado não figurava como vítima ou testemunha em investigação ou procedimento criminal instaurado no Brasil, mas denunciou crimes ocorridos no seu país de origem cometidos pelo Governo de lá, segundo ele.

Vale dizer que a Lei nº 9.807/99 institui normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção destinados a vítimas e a testemunhas de crimes "que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal". Sendo que tal investigação ou processo criminal deve estar tramitando no Brasil. Afinal, a vítima ou testemunha a ser protegida prestará depoimentos relevantes para a obtenção de resultados positivos para a segurança da sociedade e a justiça criminal brasileira.

Portanto, entendendo ser um caso que merecia uma atenção especial e que não preenchia os requisitos da Lei nº 9.807/99, a Coordenação-Geral de Proteção a Testemunhas o encaminhou ao Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça para análise e adoção das providências cabíveis no âmbito da sua competência. E, ainda, apresentou o caso na reunião do Conselho Deliberativo do Programa Federal, conforme solicitado pelo PROVITA-SP.

O referido Conselho Deliberativo também entendeu daquela forma, deliberando que "não é caso de ingresso no Programa tendo em vista que a situação de risco do Sr. XXXXXX é decorrente de questões oriundas do seu país de origem, não atendendo aos requisitos de ingresso previstos na Lei n 9.807/99. Deliberou-se ainda oficiar o Ministério Público Federal em São Paulo (à Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo), informando a respeito do caso e solicitando a adoção das providências cabíveis."

Então, o caso também foi encaminhado à referida Procuradora para adoção das providências cabíveis no âmbito da sua competência. O PROVITA-SP foi informado sobre a deliberação e encaminhamentos dados ao caso.

Por fim, o Comitê Nacional para Refugiados - CONARE informou à CGPT que foi indeferido o pedido de refúgio formulado pelo estrangeiro, tendo em vista que o mesmo se inseria numa hipótese de não concessão, prevista no inciso III do artigo 3º da Lei nº 9.474/97, qual seja: indivíduos que "tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas."

Desse modo, a CGPT informou tal decisão à Delegacia de Proteção à Pessoa de São Paulo para dar ciência ao interessado, já que ele estava sendo protegido por aquela especializada. É importante ressaltar a relevância desta Delegacia no âmbito da proteção a pessoas ameaçadas, sendo a única em todo o Brasil voltada para este público e que vem garantindo a integridade física de diversas pessoas que se encontram em situação de risco.

É válido assinalar que após o encaminhamento do caso à mencionada Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão, esta encaminhou expediente ao PROVITA-SP solicitando a inclusão do mesmo naquele Programa.

Algum tempo depois, o PROVITA-SP pronunciou-se acerca da decisão do Conselho Federal, e manifestou-se da seguinte forma: "apesar do caso não se enquadrar no formato de proteção do PROVITA, merece amparo brasileiro, pois conforme os Princípios Fundamentais tão bem propugnados em seu inciso X, do artigo 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Estado Democrático de Direito através de seus representantes legais, deverá conceder asilo político para o cidadão XXXXXXX."

Nesse sentido, cabem algumas palavras sobre os institutos jurídicos do asilo e do refúgio.

Desde o início dos tempos, há registros de pessoas, e, às vezes, de populações inteiras que, movidas por perseguição política, racial ou étnica, ou tocadas pela guerra, se viram obrigadas a deixar a sua terra natal e a procurar refúgio em outros locais, em busca de proteção e de um recomeço de vida, a salvo dos perigos que as ameaçavam.

O refúgio é, pois, uma instituição tão antiga quanto a própria humanidade e persiste até os nossos dias, até porque perseguições e guerras continuam ocorrendo.

No Brasil, a matéria é regulada pela Lei nº 9.474, de 22/07/97, que criou o Comitê Nacional para os Refugiados - CONARE, órgão colegiado, vinculado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da sociedade civil e das Nações Unidas.

Assim, de acordo com o artigo 1º da referida lei, "Será reconhecido como refugiado todo o indivíduo que por fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade ou residência habitual e não possa ou não queira acolher-se à proteção do referido país. Também poderá ser concedido o "status" de refugiado ao cidadão estrangeiro que, devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar o seu país de nacionalidade."

O artigo 3º dessa Lei enumera as hipóteses de exclusão, e os outros artigos rezam sobre os procedimentos para concessão do benefício, dentre outras questões que o envolvem.

Quanto ao asilo, a Constituição Federal de 1988 declara em seu artigo 4º, inciso X, que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da "prevalência dos direitos humanos e da concessão do asilo político". O asilo político é tratado, ainda, em título próprio da Lei nº 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro).

O asilo constitui exercício de um ato soberano do Estado, sendo decisão política, cujo cumprimento não se sujeita a nenhum organismo internacional. Já o refúgio, sendo uma instituição convencional de caráter universal, aplica-se de maneira apolítica, visando a proteção de pessoas com fundado temor de perseguição, assim definido pela Lei nº 9.474/97.

Enquanto o asilo pode ser solicitado no próprio país de origem do indivíduo perseguido, o refúgio só é admitido quando está fora de seu país.

O asilo, normalmente, é empregado em casos de perseguição política individualizada, nos quais o sujeito é vítima de perseguição pessoal por motivos de opinião ou de atividades políticas. Quando a dissidência política acarreta perseguição, procura um país onde estará protegido. Já o refúgio vem sendo aplicado a casos em que a necessidade de proteção atinge a um número elevado de pessoas, onde a perseguição tem aspecto mais generalizado, dando origem na maioria das vezes o fluxo massivo de população que atravessa a fronteira em busca de proteção. Ocorre também em casos de ocupação ou dominação estrangeira, violação dos direitos humanos ou acontecimentos que alterem gravemente a ordem pública interna no país de origem.

O asilo configura uma relação do indivíduo perseguido com o Estado que o acolhe. Já o refúgio decorre do abalo da estrutura de determinado país ou região, quando potenciais vítimas de perseguições têm seus direitos humanos ameaçados, sendo objeto de preocupação da comunidade internacional.

O asilo é uma instituição que visa à proteção frente a perseguição atual e efetiva. Já nos casos de refúgio é suficiente o fundado temor de perseguição.

Quanto às semelhanças entre os dois, tratam-se de instituições relacionadas com a proteção da pessoa humana vitimada por perseguições.

Não há obrigatoriedade do Estado em conceder asilo ou refúgio, posto que não constituem direito subjetivo do estrangeiro. São concessões do Estado no exercício do seu poder discricionário e não direitos dos indivíduos.

Sendo assim, o asilo configura-se uma medida para casos relevantes e que poderia ter sido solicitado pelo estrangeiro em questão ao Estado brasileiro.

Por fim, no caso desse estrangeiro que teve o seu pedido de refúgio indeferido e sente-se ameaçado no território brasileiro, alegando que, inclusive, foi perseguido aqui, cabe a atuação do Estado, oferecendo a ele segurança, nos termos do artigo 144, caput, da Constituição Federal, conforme já mencionado acima, combinado com o artigo 5º, caput, desta mesma Carta. Este último preceitua que deve-se garantir aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, dentre outros direitos, o direito à vida e o direito à segurança. Assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que preceitua no seu artigo 3º: "Todo homem tem direito à vida, liberdade e à segurança pessoal".

Então, deve-se atentar para os princípios que regem o Estado Democrático de Direito Brasileiro: dignidade da pessoa humana, direito à vida, dentre outros.

No mesmo sentido, o artigo 95 da Lei nº 6815/80 preleciona que "O estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros nos termos da Constituição e das leis".

Neste aspecto, cabe ressaltar que o estrangeiro residente é aquele que tem visto de permanência no Brasil. Porém, entende-se que estando em território brasileiro, a sua integridade física deve ser garantida, o que estava sendo realizado pela Delegacia de Proteção à Pessoa de São Paulo.


Um outro caso que tramita no âmbito do Programa Federal é de um estrangeiro que é réu colaborador. O caso foi encaminhado por uma Procuradora da República, que afirma que ele está colaborando com as investigações e, por isso, corre risco de morte. Porém, como ele encontra-se preso, não preenche um dos requisitos de ingresso no Programa: a inexistência de limitações à liberdade (art. 2º, § 2º, da Lei nº 9.807/99).

No entanto, a proteção pode ser oferecida aos seus familiares, tendo em vista que a referida Procuradora atesta que os familiares deste senhor correm risco de morte em virtude da colaboração dele. Assim, está sendo realizada triagem dos familiares para averiguação de adequação do caso às hipóteses de ingresso no Programa. A título de informação, este estrangeiro tem o visto permanente no Brasil e seus familiares são brasileiros.

Quando o estrangeiro comete crime no Brasil, ele está sujeito à expulsão, conforme prevêem o artigo 65 da Lei nº 6.815/80 e o artigo 101 do Decreto nº 86.715/81. Porém, de acordo com o artigo 75, inciso II, da referida Lei, quando o estrangeiro tiver cônjuge brasileiro do qual não esteja separado, de fato ou de direito, ou filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente, não se procederá a expulsão.

A respeito da situação do estrangeiro que é testemunha ou vítima de crime no Brasil, e em razão disso corre risco ou sofre ameaças, o caso pode ser encaminhado ao Programa para verificar a adequação do mesmo às hipóteses de ingresso, não sendo óbice o fato do interessado na proteção ser estrangeiro, desde que esteja de forma regular no Brasil.

Conforme entendimento do Departamento de Estrangeiros, se o estrangeiro está irregular no Brasil, não poderá obter guarida do Programa, em virtude dessa situação de irregularidade, que não permitirá a sua permanência no Brasil.

O referido Departamento coloca, ainda, que não se pode regularizar o irregular, de acordo com o previsto no artigo 38 da Lei nº 6.815/80, "É vedada a legalização da estada de clandestino e de irregular [...]".

É importante destacar que estando irregular no Brasil, o estrangeiro que é testemunha relevante em investigação ou processo criminal deverá obter a proteção do Estado, e acredito que o Programa de Proteção poderá ser acionado para tal fim, senão vejamos.

O Conselho Nacional de Imigração, criado pelo Decreto nº 86.715/81 que regulamenta a Lei nº 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro), tem como uma de suas atribuições "dirimir as dúvidas e solucionar os casos omissos, no que respeita à admissão de imigrantes", conforme inciso VII do artigo 144 do mesmo e inciso VII do artigo 1º do Decreto nº 840/93, que dispõe sobre a organização e o funcionamento do referido Conselho. Tal Decreto prevê, ainda, que o Conselho deliberará por meio de resoluções.

Assim, tendo em vista que há uma Resolução Normativa nº 27 de 25/11/98, a qual disciplina a avaliação de situações especiais e casos omissos pelo Conselho Nacional de Imigração, esta se configura numa alternativa para tal questão. O artigo 1º desta Resolução reza: "Serão submetidos ao Conselho Nacional de Imigração as situações especiais e os casos omissos, a partir de análise individual. §1º Serão consideradas como situações especiais aquelas que, embora não estejam expressamente definidas nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerá-las satisfatórias para a obtenção do visto ou permanência."

Por fim, cabe ressaltar que conforme artigo da Drª. Marília Lomanto, ex-coordenadora do Provita-BA, "a proposta multidisciplinar do Provita, considerada na sua potencial configuração de instrumental novo e desafiador para desconstruir modelos excludentes de testemunha a partir do pessoal, do aparente, para eleger uma nova concepção deste meio de prova, firmado no valor do testemunho, enquanto depoimento sincero, crível e equilibrado, a respeito de fatos que interessam à justiça".

Então, se o estrangeiro é testemunha de fatos relevantes para a Justiça Brasileira e está prestando sua colaboração em investigação ou processo criminal, de acordo com a manifestação do Ministério Público, acredito que seu testemunho deverá ser protegido, e como tal, o caso pode ser avaliado pelo Conselho Nacional de Imigração, que verificará a pertinência da permanência do estrangeiro no Brasil para este fim.

 

RETROSPECTIVA DOS SEMINÁRIOS E REUNIÕES NACIONAIS.
PAINEL NA 7º REUNIÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PROTEÇÃO VÍTIMAS DE TESTEMUNHAS AMEAÇADAS.


Dermi Azevedo
Presidente do CNPCD

FLORIANÓPOLIS - SC - 19.03.2004

Os seminários e reuniões nacionais dos Conselhos Deliberativos dos Programas de Proteção a Vítima e a Testemunhas Ameaçadas tiveram início há quatro anos, sendo o primeiro deles realizado em Campo Grande/MS, em 2000; o segundo em São Paulo/SP, em 2001; o terceiro em Belo Horizonte, em 2002, o quarto em Canela/ RS, no mesmo ano, o quinto e o sexto em Manaus/AM, e em Salvador/BA, respectivamente, no ano passado e o sétimo em Florianópolis/SC. O próximo será realizado em Vitória/ES, em setembro deste ano e o seguinte em Belém/PA, em abril de 2005.

Como acontece em todas as áreas do programa, trata-se de uma articulação construída com base no processo simultâneo de conquista de espaços políticos e de construção de consensos. Em um primeiro momento, todo o processo foi desenvolvido com base no enfrentamento de situações adversas, representadas pelo não reconhecimento do direito constitucional de os Conselhos Deliberativos poderem se organizar e influir na vida do Programa de forma articulada.

O auge desse fenômeno ocorreu em 2001, quando foi impedida a realização do Encontro Nacional previamente programado, graças a uma ofensiva da pessoa responsável pelo monitoramento, apoiada pela então gerencia nacional. O próprio Programa estadual que seria o anfitrião do seminário sofreu ameaças veladas de ter interrompido o seu convênio, caso sediasse a reunião dos conselheiros e conselheiras.
Essa fase foi superada a partir de 2002, com a decisão firme dos Conselhos Deliberativos dos Programas do Amazonas, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Ceará e do Rio Grande do Sul de concretizarem essa iniciativa. Uma das primeiras decisões desses Conselhos foi a de lutar para modificar radicalmente a metodologia adotada nos seminários e reuniões nacionais, até então marcada pelo caráter pouco participativo e centralizador.

Passou a ser adotada uma sistemática inspirada no princípio da democracia participativa; em que todos os atores do Programa são chamados a participar, de todos os momentos de todas as etapas dessa construção coletiva.

Outro fator determinante para que chegássemos ao atual estágio de construção de consensos, foram as mudanças ocorridas no próprio GAJOP, com a retomada da direção política do processo de monitoramento por parte de alguns de seus fundadores, dotados de uma visão política de alto nível e de uma postura social e ética inatacável.

Quanto aos temas predominantes em todos esses encontros, vamos destacar alguns deles; no primeiro Seminário, em Campo Grande, em 2000, foram destacados os estudos das legislações de proteção a testemunhas; a mudança de identidade de pessoas protegidas; o programa de proteção como política de segurança pública; a parceria entre o Estado e a Sociedade Civil e o fortalecimento dos Conselhos Deliberativos. Outros temas discutidos foram a priorização dos casos com o maior impacto social, sobretudo aqueles que envolvem as organizações criminosas, a questão do réu colaborador; o respeito às normas de segurança, a situação dos beneficiários excluídos; a integração entre o programa e os programas sócias do governo; a dimensão ética e os valores humanistas; a valorização da diversidade; a construção de um sistema integrado e harmônico, com uma filosofia comum e critérios de análise idênticos. O relatório do encontro de Campo Grande/MS afirma que "ainda estamos em fase de aprendizado e não há uma receita pronta".

No segundo seminário, em São Paulo/ SP, os principais temas foram, a normatização dos programas de proteção, o financiamento dos programas, o papel da polícia e, novamente, a relação entre Sociedade Civil e o Estado.

No terceiro encontro, em Belo Horizonte/MG, em fevereiro de 2002, os temas em destaque foram: a questão do depoente especial; o Poder Judiciário e sua relação com a eficácia do Programa; a importância, a estrutura e funcionamento dos Conselhos Deliberativos; a proteção às vítimas crianças e adolescentes (nessa oportunidade, o então deputado federal Nilmário Miranda, apresentou pela primeira vez o seu projeto de um programa específico para crianças e adolescentes). A questão mais polêmica em Minas Gerais foi a produção antecipada de provas, verificando-se diferenças de ponto de vistas entre os Ministérios Públicos Estaduais e Federal e entre organizações de Direitos Humanos. Em Belo Horizonte, foi criado oficialmente o Colégio Nacional de Presidentes do Conselho Deliberativos.

No quarto seminário nacional, em Canela/RS, em 2002, foram adotadas decisões de grande importância: foram aprovados o Estatuto e o Regimento do Colégio de Presidentes e foi definida a constituição da oficina, que se tomaria depois o atual fórum permanente. Foi também consenso a aprovação da proposta da criação do Conselho Nacional do Sistema de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, sendo estabelecidas as suas linhas gerais, que seriam depois detalhadas em Brasília, na primeira reunião do Fórum Permanente.

Em Canela, foi, pela primeira vez, aprovada a proposta de capacitação específica de atores do Sistema na área de Segurança Pública e foi redefinido o enfoque, até então fortemente marcado por preconceitos de parte a parte, sobre o papel da polícia nesse programa.

O quinto Seminário Nacional realizou-se em Manaus/AM, em março de 2003, sobre o tema "O sistema nacional de proteção a testemunhas no estado de direito democrático-princípio, realizadas e alternativas de crescimento". O seminário teve dois eixos. O primeiro sobre a proteção a testemunhas no estado democrático de direito, o segundo sobre a estratégia de consolidação dos programas. Pela primeira vez, foi oficialmente debatido o tema da informação e da contra-informação na luta contra o crime organizado, embora não tenha havido consenso sobre a colaboração entre os atores do programa e os organismos oficiais especializados nessa matéria. A partir de Manaus, os seminários nacionais, passaram a ser chamado de Reuniões Nacionais, para facilitar a tramitação burocrática da participação de servidores públicos nesses eventos. Ainda em Manaus realizou-se pela primeira vez um seminário estadual do programa de caráter público, para tornar mais visível a nossa atividade. Pela primeira vez em Manaus, representantes das equipes técnicas participaram amplamente dos trabalhos.

Na sexta reunião nacional em Salvador/BA de 02 a 06 de setembro de 2003, o tema central foi: "O perfil dos protegidos e dos protetores no sistema nacional de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas". Pela primeira vez, foi adotada a palavra sistema para indicar a atuação conjunta das várias instâncias do programa. Do mesmo modo, foram analisadas, pela primeira vez, nesse tipo de reunião, os mecanismos de inclusão, desligamentos e exclusão de beneficiários. Voltaram também à pauta a situação dos ex-beneficiários e as medidas de segurança.

Esta sétima reunião, em Florianópolis/SC, passa para a história por causa de algumas características muito especiais: é a primeira realizada numa instituição de segurança pública, no caso, a ACADEPOL, simbolizando a busca da superação definitiva de preconceitos, que só dificultam a luta pela vida, contra violência e contra a impunidade; pela primeira vez, acontece, numa reunião nacional, uma Câmara Técnica de Segurança, voltada para a capacitação e o aperfeiçoamento dos atores do sistema, nessa área essencial.

As discussões realizadas em Florianópolis apontam para algumas direções altamente estratégicas: a necessidade de melhor conhecimento e de capacitação permanente para o enfrentamento do crime organizado; a necessidade e a urgência da elaboração de propostas legislativas que aperfeiçoem as atuais leis relativas ao Programa; a urgência de medidas concretas, mesmo que sejam a partir dos Estados, para que os serviços de proteção aos depoentes especiais tornem-se uma realidade; a criação, sem mais demoras, do Conselho Nacional do Sistema de Proteção; o aporte adequado de recursos para garantir o crescimento sustentável do Programa; o aprofundamento das parcerias entre o Estado e a Sociedade Civil, particularmente no que se refere ao sistema de justiça e de segurança pública; o aprofundamento dos aspectos éticos do trabalho de todos os atores do sistema, além da continuidade da nova etapa e do novo formato do monitoramento.

Por outra parte, queremos propor que o tema da próxima reunião nacional em Vitória, no segundo semestre, seja o do conhecimento e o da interpretação dos serviços públicos destinados à proteção da segurança e das garantias fundamentais da cidadania.

Em síntese só podemos falar de retrospectiva se estiver ligada à perspectiva do presente e a uma visão prospectiva. Podemos dizer, sem medo de erro, que a nossa caminhada vem sendo progressivamente bem sucedido. O fundamental é nos ancorarmos nos ideais que nos sustentam e na luta sem tréguas para que a vida seja sempre respeitada de promovida.
In dubio, provita.