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Crime organizado: para combater o inimigo é preciso conhecê-lo

Em interessante notícia, publicada pela Coordenadoria de Imprensa, o STJ aborda algumas questões interessantes sobre o combate à criminalidade organizada. Sem dúvida, embora alguns autores discordem, me parece que os dois grandes grupos de problema na temática são epistemológico e conceitual. Parece-me que, em grande parte, a problemática reside na questão do “se” e “como” o crime organizado pode ser conhecido e fundamentado. Será que o consenso conceitual apreendido, muitas vezes, da realidade italiana, pode ser objetivamente conhecido ou, por outro lado, trata-se de uma definição contigente, condicionada pela realidade histórico-cultural daquele país? Por outro lado, será que estamos diante, apenas, de uma problemática definitorial? Por certo, a questão torna-se relativamente importante, pois do elemento conceitual de que se parta pode-se alcançar os movimentos sociais, v.g, MST.

Não há dúvida de que à medida em que os Estados foram se desenvolvendo e as atividades criminosas foram superando as fronteiras, o direito penal tradicional, aplicável no âmbito interno dos Estados, mostrou-se insuficiente para reprimir os novos empreendimentos criminosos. Então, uma série de elementos internacionais é agregada ao direito penal interno, com o objetivo de reprimir os crimes internacionais.

Esta “desfronteirização”, do mesmo modo que favoreceu o intercâmbio entre os países, impulsionou a transnacionalização do crime; não por outra razão é aí que surge o direito penal internacional. Como fenômeno agregado à globalização do crime é que aparece o crime organizado.

Não resta dúvida que a definição sugerida pelo FBI é, ao menos em nosso sentir, equívoca, pois limita a criminalidade organizada à obtenção de lucro. Ora, todos conhecemos que existem atividades criminosas que não objetivam lucro. Suas atividades, muitas vezes, vinculam-se à desestabilização interna de um país ficando o lucro, quando muito, em segundo plano. Em nosso ordenamento as linhas básicas de definição encontram-se na Convenção de Palermo, internalizada através do Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004.

Enfim, este é um tema aberto que merece, por isto mesmo, um olhar científico mais compromissado. Eis abaixo a matéria divulgada no sítio do Superior Tribunal de Justiça.

Notícia:

Máfia na Itália, Tríade na China, Yakuza no Japão, Cartel na Colômbia e no México, Bratva na Rússia e na Ucrânia e Comando no Brasil. Nomes diferentes para denominar uma mesma atividade ilícita que se estende pelo mundo todo: o crime organizado. Por isso, governos, empresas, instituições e as sociedades civis organizadas têm unido esforços para combater essa prática, como é o caso do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e da Organização das Nações Unidas (ONU). Recentemente, o presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, assinou um documento com o representante regional para o Brasil e o Cone Sul do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), Bo Mathiasen. A intenção do acordo é promover a cooperação mútua e o intercâmbio de experiências no combate ao crime transnacional.

Para o representante do UNODC, Bo Mathiasen, a globalização tem transformado o modo de vida das sociedades e dos estados, sendo as fronteiras entre os países mais permeáveis, e o trânsito de pessoas, mercadorias, serviços e recursos cada vez mais ágil. Segundo Mathiasen, “a mesma lógica que facilita o comércio e a integração entre os povos também implica mudanças radicais nas dinâmicas dos crimes e da violência”. E lembrou que, se por um lado, as facilidades advindas de ferramentas como a internet são muito bem-vindas, por outro, elas exibem um aspecto hostil, “afinal as mesmas tecnologias que possibilitam melhorias substantivas nas vidas das pessoas também são utilizadas por aqueles que burlam as leis, cometem crimes e desafiam a Justiça”.

O documento assinado pelos dois órgãos prevê a realização de esforços conjuntos no desenvolvimento de ações que fortaleçam a punição das diversas modalidades de crime organizado transnacional. “A aproximação entre essas entidades é chave para consolidar o papel da Justiça Federal no enfrentamento ao crime organizado doméstico e transnacional, sobretudo à luz dos padrões e boas práticas internacionais no mundo irreversivelmente globalizado”, destacou o presidente do STJ.

Definição

Entidades especializadas e estudiosos envolvidos no combate ao crime organizado, em geral encontram dificuldade para estabelecer um conceito comum que atenda a tantas particularidades em relação à prática internacional desses delitos. O Federal Bureau of Investigations (FBI) define o crime organizado como qualquer grupo que tenha uma estrutura formalizada e cujo objetivo primário seja a obtenção de lucro por meio de atividades ilegais.

Contudo, a procuradora de justiça Arinda Fernandes, pós-doutora no assunto, acredita não ser difícil conceituar o crime organizado. Para ela, é possível citar o exemplo da Itália, “que desde a década de oitenta ostenta em seu código penal uma figura típica que define a associação criminosa de tipo mafioso, com várias formas qualificadas”. A especialista também lembra a importância da Convenção de Palermo, válida no Brasil desde 2004. Segundo a procuradora, essa convenção define organização criminosa, traçando suas características básicas. “Temos aí as linhas-mestras que devem nortear o legislador brasileiro na elaboração de lei que tipifique essa questão”.

O cientista político Guaracy Mingardi, em sua tese de doutorado “O Estado e o crime organizado” aponta quinze características intrínsecas ao crime organizado. Entre elas, destacamos: a simbiose com o Estado, a hierarquia organizacional, a divisão do trabalho, a previsão de lucros, o monopólio e o uso da violência, o controle territorial e a presença da lei do silêncio.

A procuradora Arinda Fernandes explica o porquê da participação do Estado nesses delitos: “O braço forte da organização sempre foi e sempre será a corrupção de agentes públicos. Como se trafica seres humanos sem que haja a conivência de um representante do Estado? Como traficar drogas sem a “cooperação” de um agente público, sobretudo nos portos e aeroportos? O crime organizado desestabiliza o Estado, subverte a ordem instituída”.

Crimes no Brasil e no mundo

A norma que vigora em âmbito mundial em relação ao combate do crime organizado é a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Esse documento, conhecido como Convenção de Palermo, foi adotado em Nova Iorque, em 15 de dezembro de 2000, entrando internacionalmente em vigor em 29 de setembro de 2003. No Brasil, a Convenção de Palermo foi aprovada por decreto e passou a valer em 2004.

Essa convenção é um instrumento legal que obriga os países signatários a tomar uma série de medidas contra o crime organizado transnacional. Entre as disposições estão a criação de leis nacionais que punam localmente as atividades ilícitas em âmbito internacional, a adoção de novos mecanismos para a assistência jurídica mútua, extradição, cooperação e assistência técnica e treinamento.

A atuação das organizações criminosas vai muito além do tráfico de drogas. Entre as atividades desempenhadas por essas pseudoempresas, estão o roubo de cargas, a fraude em licitações públicas e o tráfico de órgãos. Uma reunião realizada pela ONU, em fevereiro de 2006, em Viena, concluiu não ser possível fazer uma lista expressa dos delitos praticados pelo crime organizado, uma vez que essas organizações atuam tanto contrabandeando ébano quanto aliciando imigrantes. Os crimes passam pela lavagem de dinheiro, obstrução da Justiça, tráfico de armas, de veículos e de seres humanos. Qualquer relação seria incompleta, já que as autoridades que analisam os casos lidam com fenômenos criminais múltiplos e diferentes.

Essa visão também é defendida pelo presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, deputado Laerte Bessa. Ao mencionar o Projeto de Lei 150/2006, de iniciativa do Senado Federal, que trata do crime organizado, o deputado corrobora a posição adotada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que retirou do texto inicial o rol taxativo dos crimes que poderiam ser considerados como delitos praticados por organizações criminosas. Segundo o presidente da Comissão da Câmara dos Deputados, a não existência expressa dos crimes cometidos por essas organizações “simplifica e elastece a atuação judiciária, que, por ocasião de algum crime não relacionado no texto da lei, seria obrigada a classificar aquela participação como quadrilha ou bando, tornando a punição estatal mais branda, o que não é, de forma alguma, o espírito da lei em comento”.

O deputado ainda ressalta a importância de se promover mudanças no Código Penal brasileiro: “É preciso atualizar a nossa legislação, construída e aprovada quando os crimes não eram tão violentos nem possuíam tanta organização, ou mesmo o nível de crueldade como os que assistimos todos os dias na TV e vivenciamos nas delegacias”.

De acordo com a procuradora de justiça Arinda Fernandes, hoje existe um cenário normativo extremamente defasado em relação a vários países. Ela cita, por exemplo, o não cumprimento por parte do legislativo em relação às metas traçadas pela Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro (ENCLA), instalada no Ministério da Justiça no final de 2003: “Entre essas metas, encontram-se os exames de anteprojetos de lei na esfera de conceituação de organização criminosa e sobre a extinção de domínio (confisco de bens de origem duvidosa com a inversão do ônus da prova). Esses anteprojetos foram elaborados por comissões de trabalho instituídas pela ENCLA”.

Mas tão complexo quanto punir os crimes cometidos por organizações bem estruturadas é dimensionar a extensão dos delitos. Para Arinda Fernandes, o mérito desse acordo de cooperação firmado entre o STJ e a ONU é a oportunidade de traçar um retrato da conjuntura brasileira no que tange a esse fenômeno internacional. “Finalmente se chegará à conclusão da grande necessidade de criação do que sempre defendi, ou seja, varas especializadas para tratar das questões ligadas ao crime organizado, a exemplo do que já foi feito em relação à lavagem de dinheiro. Outro aspecto relevante, nesse acordo, é a possibilidade de desenvolvimento de ferramentas, pesquisas e estudos, pois nos falta, ainda, formação específica entre os magistrados brasileiros, salvo algumas poucas exceções”, concluiu a procuradora.

Ao ratificar acordos como este, de cooperação mútua com a ONU para o combate ao crime transnacional, o Superior Tribunal de Justiça vai ao encontro da sua visão de futuro: ser reconhecido pela sociedade como modelo na garantia de uma Justiça acessível, rápida e efetiva. E, ao buscar formas para atender às expectativas dos cidadãos, o STJ também se firma como exemplo para toda comunidade jurídica.