CAOCRIM

A Legislação Brasileira de Combate Ao Crime Organizado

João Bosco Sá Valente*

A Lei n.º 9.034/95, modificada pela Lei n.° 10.217/01, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, estabeleceu três categorias legais: a) bando ou quadrilha (art. 288 do Código Penal), que exige a participação de quatro ou mais pessoas; b) associação criminosa para o tráfico de drogas [16] (art. 35 da Lei n.° 11.343/06), a qual se caracteriza pela participação de, no mínimo, dois agentes, e associação criminosa para cometer genocídio (art. 2° da Lei n.° 2.889/56), que exige a participação de, no mínimo, três pessoas; e c) organização criminosa.

Com a adoção no Brasil da Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto n.º 5.015/04), foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro a definição de organização criminosa como sendo o grupo estruturado de 3 ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, benefício econômico ou material. Apesar desses diplomas, a legislação brasileira padece de dois problemas.

Primeiro, considerando o inciso XXXIX, do art. 5o, da Constituição Federal e o art. 1° do Código Penal Brasileiro, os quais dispõem que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal"; considerado que a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em sede de direito penal; e considerando a função de garantia da lei penal, representada pelo princípio de que nullum crimen, nulla poena sine lege, bem como seus desdobramentos (a) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, (b) nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, (c) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta e (d) nullum crimen, nulla poena sine lege certa, não se pode aplicar a definição de organização criminosa prevista na Convenção ao crime organizado estritamente nacional.

Com efeito, apesar de estar integrada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária, a mencionada Convenção trata, especificamente, das organizações criminosas transnacionais. Estas, na forma do artigo 3, são aquelas que cometem crimes: a) em mais de um Estado; b) em um só Estado, desde que parte substancial da preparação, planejamento, direção e controle tenha ocorrido em outro; c) num só Estado, mas envolvem a participação de grupo criminoso organizado que pratique delitos em mais de um Estado; ou d) num só Estado, mas os crimes produzam efeitos substanciais noutro país. Logo, as hipóteses de uma organização criminosa brasileira ser atingida pela Convenção estão relacionadas nas alíneas "b", "c" e "d" do Parágrafo 2 do Artigo 3. Ainda assim, deve-se observar que o conceito continua vago, pois a Convenção prevê que a organização esteja formada "há algum tempo", sem definir com precisão o lapso temporal.

O segundo problema refere-se ao fato de inexistir tipo penal que criminalize a participação em organização criminosa. De fato, na redação original da Lei n.° 9.034/95, confundia-se o conceito de organização criminosa com o de bando ou quadrilha, ou seja, o crime e a pena da participação em organização criminosa era o mesmo do art. 288 do Código Penal. Tratava-se de equívoco grosseiro, pois não é factível entender que basta a associação estável ou duradoura de quatro ou mais pessoas, agregadas com vistas à prática de crimes, para que se tenha uma organização criminosa, que pressupõe um grau muito mais elevado de articulação e expertise.

O crime de bando ou quadrilha do art. 288 do Código Penal Brasileiro é semelhante ao crime de Associazione per Delinquere, do art. 416 do Código Penal Italiano, o qual pune, com reclusão de três a sete anos, a organização ou a associação de três ou mais pessoas com o objetivo de cometer crimes. O simples fato de fazer parte de uma associação criminosa é suficiente para que a conduta seja punível.

Com o advento da Lei n.° 10.217/01, o art. 1° da Lei n.° 9.034/95, foi alterado e passou a incluir a expressão "ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo". Em outras palavras, houve uma separação das condutas: a) participar de bando ou quadrilha; b) participar em associação criminosa; e c) participar em organização criminosa.

O crime de bando ou quadrilha, previsto no art. 288 do Código Penal, e o de integrar associação criminosa, descrito no art. 35 da Lei n.° 11.343/06 e no art. 2° da Lei n.° 2.889/56, são plurissubjetivos e incriminam, de forma excepcional, o mero ato preparatório, consubstanciado na associação, reunião ou congregação estável de agentes com o fito de cometer crimes. Os crimes de quadrilha ou bando e de associação criminosa são autônomos e independem da prática de qualquer outro delito. Pune-se a mera associação, tendo em vista a periculosidade presumida.

Legalmente, corrigiu-se o defeito de confundir o crime organizado com o bando ou quadrilha, no entanto, a falta de cuidado na elaboração da lei deixou a participação em organização criminosa sem punição. Na prática, a confusão continua. Diante da falta de tipificação legal o Ministério Público tem denunciado os membros de organizações criminosas por formação de bando ou quadrilha para evitar que a conduta criminosa fique sem sanção.

Como já se disse, cotejando-se a Lei n.° 9.034/95, tem-se que a norma se omitiu na definição do fenômeno do crime organizado. Conforme o autor, usar definição meramente doutrinária ofende o princípio da reserva legal e, assim, a lei de combate ao crime organizado somente pode ser aplicada aos crimes de quadrilha ou bando e de associação criminosa, já previstos em lei; porém, quanto as chamadas organizações criminosas, ainda não, pois não se sabe o que significam. Por essa razão, as normas referentes à organização criminosa seriam inaplicáveis, dado que são atinentes a algo que ainda não existe.

A Comissão do Conselho da Justiça Federal destinada a examinar e propor o aprimoramento da legislação de combate à lavagem de dinheiro (Portaria n.º 98, de 4/9/2002), composta por membros da Magistratura Federal, do Ministério Público Federal, do Departamento de Polícia Federal, do Banco Central, da Federação Brasileira de Bancos, da Secretaria da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda (COAF), também propôs a definição legal do conceito de organização criminosa para tornar plenamente eficaz o inciso VII, da Lei n.º 9.613/98.

Cumpre destacar que a Lei n.º10.217/01, se propôs a resolver os problemas da Lei n.° 9.034/95, ao estabelecer uma definição clara do que venha a ser organização criminosa.

Como se observa, urge corrigir o erro para que se possa dotar o estado brasileiro de condições legais de punir o crime organizado. A inexistência na legislação brasileira uma definição do que seja uma organização criminosa, dificulta, se não impossibilita, a punição do crime. O art. 2 da Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto n.º5.015/04), deixou de fora o crime organizado eminentemente nacional, como definido no artigo 3° da norma.

Porém, nem tudo que a imprensa chama de Crime Organizado tem a ver de fato com essa modalidade. Mesmo o tráfico de drogas muitas vezes é extremamente desorganizado, especialmente no varejo. Na realidade, o mercado das drogas normalmente é relativamente organizado, tenha ou não uma organização criminosa por trás. O mercado das principais cidades brasileiras, até pouco tempo repleto de pequenas “bocas de fumo”, aparentemente agora está sendo gerenciado cada vez mais por criminosos pertencentes ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso, porém, não implicou nenhuma melhora na organização. Os usuários estão pagando os mesmos preços, comprando nos mesmos lugares e a corrupção continua igual, não aumentou nem diminuiu.

Nas outras modalidades a situação é similar, como nos roubos e furtos de veículos que, na maioria dos casos, são feitos por quadrilhas comuns. Existem, porém, organizações criminosas especializadas em roubo de veículos. A mesma coisa ocorre com outros tipos de crime, como o contrabando, que pode ser praticado por um indivíduo, uma quadrilha ou uma organização criminosa.

Portanto, não é a modalidade do crime que identifica a existência de Crime Organizado.

O que o define são algumas características que o tornam diferente do crime comum. Essas características, para a maioria dos autores, são cinco:

1. Hierarquia.

2. Previsão de lucros.

3. Divisão do trabalho.

4. Planejamento empresarial.

5. Simbiose com o Estado.

As quatro primeiras características, que são encontradas em toda atividade empresarial moderna, foram apenas adaptadas pelas organizações criminosas.

Não existe empresa sem hierarquia, que não preveja qual o retorno de seus investimentos e onde o trabalho não seja setorizado e especializado. O mesmo ocorre no Crime Organizado, mas não nas quadrilhas comuns, cuja liderança é mais fluida e muitas vezes baseada na capacidade que o líder tem de se impor fisicamente.

Quanto ao planejamento empresarial, o próprio nome já revela ser uma característica específica das empresas que inexiste ou é fraca nas quadrilhas comuns.

Previsão de lucros normalmente passa longe da capacidade das quadrilhas, mesmo que especializadas. As mais comuns são as de ladrões, e essas pegam quanto der em cada roubo. É impossível prever a lucratividade do mês seguinte.

Já numa organização criminosa de jogo ou tráfico, por exemplo, existe uma rotina que permite prever o próximo mês tendo como base os anteriores.

A divisão do trabalho, na maioria dos casos, inexiste no crime comum.

Uma quadrilha de roubo a banco tem apenas uma função diferenciada, a de motorista, o resto do grupo faz apenas uma coisa: entra no estabelecimento de arma em punho e rouba o que puder. É certo que, em alguns casos recentes, foram utilizadas mulheres ou crianças para levar as armas para dentro do banco, mas são situações raras e não indicam especialização, mas sim oportunismos. Já numa organização, mesmo uma pequena que atue na venda de peças de carros roubados, essa divisão é nítida. Existem membros especializados em furtar os veículos; outros, em desmanchá-lo; outros, na venda de peças, na produção de contabilidade falsa, no acobertamento etc.

Quanto ao planejamento, qualquer um que já lidou com criminosos comuns, especialmente ladrões, verificou que eles vivem o momento. O máximo de planejamento diz respeito ao levantamento de um local dias antes do roubo.

São raras as quadrilhas que planejam com um mês de antecedência. Aliás, esse é o motivo pelo qual muitos acabam presos. Mesmo seqüestradores comuns, não pertencentes a organizações criminosas, inúmeras vezes decidem pelo seqüestro no meio de um roubo. Nem mesmo planejaram onde guardar suas vítimas.

A quinta característica, “simbiose com o Estado”, é a mais polêmica. Muitos policiais negam que seja uma constante, porém ela é isoladamente a mais importante das cinco. Em todas as organizações estudadas aparece uma ligação com a máquina do Estado. Um desmanche de carros roubados só consegue operar se tiver respaldo da fiscalização ou da polícia. Um ponto de tráfico, que atende sua clientela anos a fio no mesmo local, tem necessidade constante de algum tipo de proteção. Para confirmar essa informação, basta verificar a tranqüilidade com que os apontadores do jogo do bicho operam nos maiores centros urbanos.

Outra característica marcante do Crime Organizado é que ele tem três modalidades diferentes: a tradicional, a empresarial e a endógena.

As organizações da primeira modalidade, “tradicional”, possuem um modelo de relacionamento entre os membros baseado no apadrinhamento. Um membro recomenda um calouro, e a partir de então a carreira dos dois fica interligada. Outras características marcantes são: sistema de clientela, imposição da lei do silêncio e o controle pela força de determinada porção de território.

Outra prática diferenciadora é que atuam na “clínica geral”, ou seja, fazem de tudo. Não se especializam, optando pelos crimes mais rentáveis do momento.

A Máfia siciliana, por exemplo, nas últimas décadas, já atuou no contrabando de cigarros, tráfico de heroína, tráfico de morfina, extorsão, seqüestro, venda de proteção, formação de cartel, homicídio de aluguel etc.

Um elemento interessante desse tipo de organização criminosa é que normalmente ela nasce em circunstâncias muito específicas:

1. Na cadeia, a partir de uma liga de presos. Como a Camorra napolitana, que tem mais de um século de existência.

2. Pela união de pequenas quadrilhas, criando um conselho ou empossando um chefão, como a Yakuza.

3. Por meio de laços de sangue que unem grupos numa terra dominada por estranhos, num modelo parecido com o da Máfia de Nova York.

4. Pela união de grupos interessados na manutenção do monopólio de uma mercadoria ou serviço, como o Cartel de Cali.

No nosso país, a cadeia é a grande gestora dessas organizações. Foi nela que surgiram o Comando Vermelho (CV), o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Terceiro Comando (TC).

Já a modalidade “empresarial” é marcada por transpor para o crime alguns princípios modernos de administração. As relações entre os membros são apenas de trabalho, sem nenhum vínculo mais forte. Além disso, geralmente são especializadas, ou seja, atuam com determinado tipo de crime. A lavagem de dinheiro, por exemplo, é uma especialidade desse modelo.

As que seguem a modalidade “endógena” são aquelas que nascem dentro de determinadas instituições, visando aproveitar vantagens ilegais que não estão acessíveis aos “de fora”. Normalmente são geradas dentro do aparelho estatal, mas em alguns casos aparecem em empresas. Atuam em desvio de dinheiro público, corrupção, favorecimento etc. O importante para entender esses grupos é que não se trata apenas de aproveitar as oportunidades que surgem. Implica uma atividade constante e a manutenção dos mesmos indivíduos por longos períodos em situação de poder, além do recrutamento, ou cooptação, de novos elementos que possam influir na situação. É mais provável o surgimento de organizações desse tipo em atividades que impliquem alto poder de pressão, como fiscalização, investigação, compra etc.

No Brasil, o jogo do bicho é o crime que mais se adapta à modalidade “tradicional”. Já as organizações voltadas para o roubo de carga, roubo de veículos e lavagem de dinheiro se ajustam mais à modalidade “empresarial”. Quanto ao Crime Organizado “endógeno”, a famosa Máfia dos Fiscais, combatida pelos Ministérios Públicos no final da década passada, é o exemplo mais gritante.

Em relação ao narcotráfico, a definição é mais difícil, pois depende muito da região do país em que age e em que etapas do tráfico atua. Nas organizações internacionais, por exemplo, temos estruturas tradicionais, como a dos grupos nigerianos que usam o Brasil como ponto de passagem da cocaína para a Europa, enquanto outras são altamente especializadas e empresariais. Os grupos originários da cadeia, como o PCC, estão, aos poucos, ganhando contornos de organizações criminosas tradicionais.

* Procurador de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Combate ao Crime Organizado e às Organizações Criminais - CAO-CRIMO.