JURISPRUDÊNCIA DO STF

 

EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL COM EMPREGO DE VIOLÊNCIA. IMPOSIÇÃO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. MOTIVAÇÃO IDÔNEA. ORDEM DENEGADA. I – Nos termos do art. 122, I, do ECA, a medida socioeducativa de internação pode ser aplicada nos casos em que o ato infracional é praticado com o emprego de violência contra a pessoa. II – Hipótese na qual a medida de internação mostra-se a mais adequada, uma vez que o menor encontrava-se cumprido medida de semiliberdade à época do cometimento do ato infracional, o que demonstra que tal medida não foi suficiente para sua ressocialização. III – Ordem denegada. Decisão A Turma denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência da Ministra Cármen Lúcia. 1ª Turma, 15.2.2011.
 
 
 
 

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. AMEAÇA E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COMETIDOS CONTRA VÍTIMAS MENORES. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL PARA OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DE CONVICÇÃO TRAZIDOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA INSTAURAÇÃO DE SINDICÂNCIA PARA APURAÇÃO DE ILÍCITOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. ART. 201, VII, DO ECA. ORDEM DENEGADA. I – O inquérito policial é dispensável quando o Ministério Público já dispuser de elementos capazes de formar sua opinio delicti (art. 39, § 5º, do CPP). II – Na espécie, tendo os pais das vítimas comparecido perante o representante do Ministério Público, oferecido representação e fornecido elementos suficientes para a propositura da inicial acusatória, não há qualquer nulidade ou irregularidade no início da ação penal sob estas condições. III - O Ministério Público possui legitimidade para instaurar sindicância para a apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à juventude, nos termos do art. 201, VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente. IV - Ordem denegada. Decisão A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. 1ª Turma, 23.11.2010.

 

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PRÁTICA DA MENDICÂNCIA E CORRUPÇÃO DE MENOR. ABOLITIO CRIMINIS. ATIPICIDADE SUPERVENIENTE DOS FATOS ATRIBUÍDOS AO PACIENTE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL. WRIT PREJUDICADO. I – A alegada ocorrência daabolitio criminis d a imputação feita ao paciente não foi examinada pelo STJ no acórdão ora atacado, não podendo esta Suprema Corte analisá-la, sob pena de indevida supressão de instância e de extravasamento dos limites de competência do STF descritos no art. 102 da Constituição Federal. II – O caso, porém, apresenta peculiaridades que recomendam a concessão da ordem, de ofício. III – A Lei 12.015/2009 revogou a Lei 2.252/1954, que tratava da corrupção de menores, todavia, inseriu o art. 244-B no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), cuja redação é a mesma da norma revogada. IV – O art. 60 do Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), por sua vez, foi revogado pela Lei 11.983/2009, descriminalizando, assim, a conduta antes descrita como mendicância. V – Segundo o art. 244-B do ECA, pratica o crime de corrupção de menor quem corrompe ou facilita a corrupção de menor de dezoito anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la. VI – O objetivo desse dispositivo é a proteção do menor em relação à influência negativa de adultos em uma fase de formação da personalidade, evitando, com isso, sua inserção precoce no mundo do crime. VII – Deixando de ser a mendicância infração penal, desaparece, no caso sob exame, o objeto jurídico tutelado pelo ECA, uma vez que não mais existe a contravenção que os menores foram levados a praticar, ocorrendo, por consequência, a abolitio criminis em relação aos dois delitos imputados ao paciente. VIII – Ordem concedida de ofício para, reconhecendo a atipicidade fatos atribuídos ao paciente, trancar a ação penal relativamente às duas imputações (mendicância e corrupção de menor). IX - Habeas corpus prejudicado. Decisão A Turma julgou prejudicado o pedido de habeas corpus, mas, concedeu a ordem, de ofício, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. 1ª Turma, 26.10.2010.

 

EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE. LIMITE MÁXIMO DE DURAÇÃO. RESTRIÇÃO À REALIZAÇÃO DE ATIVIDADES EXTERNAS E IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES RELATIVAS AO BOM COMPORTAMENTO DO PACIENTE PARA VISITAÇÃO À FAMÍLIA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 227 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Ressalvadas as hipóteses arroladas nos artigos 121, § 3º e 122, § 1º, o Estatuto da Criança e do Adolescente não estipula limite máximo de duração da medida socioeducativa de semiliberdade. Resulta daí que, por remissão à aplicação do dispositivo concernente à internação, o limite temporal da semiliberdade coincide com a data em que o menor infrator completar vinte e um anos [art. 120, § 2º]. 2. O artigo 120 da Lei n. 8.069/90 garante a realização de atividades externas independentemente de autorização judicial. 3. O Estado tem o dever de assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar [artigo 227, caput, da Constituição do Brasil]. O objetivo maior da Lei n. 8.069/90 é a proteção integral à criança e ao adolescente, aí compreendida a participação na vida familiar e comunitária. 4. Restrições a essas garantias somente são possíveis em situações extremas, decretadas com cautela em decisões fundamentadas, o que no caso não se dá. Ordem parcialmente concedida para permitir ao paciente a realização de atividades externas e visitas à família sem a imposição de qualquer condição pelo Juízo da Vara da Infância e Juventude. Decisão A Turma, à unanimidade, deferiu, em parte, o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelo paciente, o Dr. Jorge Espósito. Ausentes, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie e, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. 2ª Turma, 25.05.2010.

 


MENOR - INTERNAÇÃO. A reiteração de práticas delituosas, inclusive quando observada a liberdade assistida, é conducente, segundo o disposto no artigo 122, inciso II, da Lei nº 8.069/90, a atrair a medida socioeducativa de internação. Decisão A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. 1ª Turma, 04.05.2010.

 

DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. GARANTIA ESTATAL DE VAGA EM CRECHE. PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. PRECEDENTES. 1. A educação infantil é prerrogativa constitucional indisponível, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a creches e unidades pré-escolares. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. 3. Agravo regimental improvido. Decisão
A Turma, à unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto da Relatora. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. 2ª Turma, 15.12.2009.

 

EMENTA: HABEAS CORPUS. ATO INFRACIONAL. PRINCÍP IO DAINSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. ASPECTOS RELEVANTES DO CASO CONCRETO. CARÁTER EDUCATIVO DAS MEDIDAS PREVISTAS NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ORDEM DENEGADA. I - O princípio da insignificância é aplicável aos atos infracionais, desde que verificados os requisitos necessários para a configuração do delito de bagatela. Precedente. II - O caso sob exame, todavia, apresenta aspectos particulares que impedem a aplicação do referido princípio. III - As medidas previstas no ECA têm caráter educativo, preventivo e protetor, não podendo o Estado ficar impedido de aplicá-las. IV - Ordem denegada. Decisão A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Carlos Ayres Britto. 1ª Turma, 20.10.2009.

 

DECISÃO: Trata-se de pedido de suspensão de liminar (fls. 02-22), formulado pelo Estado do Tocantins, contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, que indeferiu pedido de suspensão de liminar ajuizado naquele Tribunal de Justiça. A decisão impugnada manteve liminar concedida na ação civil pública nº 2007.0000.2658-0/0, em curso perante o Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Araguaína/TO, que determinou o seguinte: “[...] Concedo a liminar e determino ao Estado de Tocantins que implante na cidade de Araguaína/TO, no prazo de 12 meses, unidade especializada para cumprimento das medidas sócio-educativas de internação e semiliberdade aplicadas a adolescentes infratores, a fim de propiciar o atendimento do disposto nos artigos 94, 120, §2º e 124 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Determino ainda que o requerido se abstenha de manter adolescentes apreendidos, após o decurso do prazo de doze meses, em outra unidade que não a acima referida. Fixo multa diária no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais), a ser paga pelo requerido, em caso de descumprimento ou de atraso no cumprimento da presente decisão, a qual deverá ser revertida em favor do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos termos dos artigos 213 e 214 da lei nº 8.069/90.” (fl. 94) Na ação civil pública, argumentou-se que o Poder Executivo local, ante a inexistência de unidade especializada naquela comarca, estaria encaminhando os adolescentes infratores para o município de Ananás/TO, distante 160 quilômetros daquela localidade, o que dificultaria o contato daqueles com seus familiares (fl. 62). Além disso, os adolescentes infratores estariam alojados em cadeia local, em celas adjacentes a de presos adultos, a permitir contato visual e verbal entre eles, em ambiente inóspito, fato este que teria sido atestado pelo Conselho Tutelar de Araguaína e pelo Diretor do estabelecimento prisional (fl. 65). Argüiu-se, ainda, o descumprimento do compromisso firmado entre o Governo do Tocantins e o Ministério Público Estadual, mediante Termo de Ajustamento de Conduta - TAC, para que até 15 de janeiro de 2007 houvesse a alocação de recursos para a criação do regime de semiliberdade naquela Comarca, em Palmas e em Gurupi (fl. 62). A ação civil pública defendeu ser incabível a alegação do óbice da reserva do possível no presente caso, ante a necessidade de garantia do mínimo necessário à existência condigna dos adolescentes infratores, conforme informariam precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul (fls. 68-71). Por fim, consignou o Ministério Público Estadual que a medida liminar deveria ser concedida, em face das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (art. 123, art. 185, art. 94, art. 120 e art. 124), bem como em face do que dispõe a Constituição Federal (art. 1º, III; art. 5º, III, XXXIX, XLIX; art.37, caput; art. 227, caput e §3º, todos da CF/88) e Pactos Internacionais (fls. 71-88). O juízo de primeiro grau concedeu a medida liminar, conforme transcrição acima, ressaltando que as normas contidas no art. 227, caput e §3º, da Constituição e reproduzidas no ECA possuem plena eficácia (fls. 90-95). Ademais, a medida liminar consignou, a despeito dos adolescentes não estarem mais internados na Cadeia Pública de Ananás/TO no momento da decisão, que: a inexistência de unidade especializada em Araguaína/TO obrigaria o encaminhamento de adolescentes infratores ao CASE de Palmas/TO, distante 375 quilômetros daquela comarca, inviabilizando o contato familiar e o próprio sucesso do processo sócio-educativo. Contra tal decisão, o Estado do Tocantins ajuizou pedido de suspensão de liminar junto à Presidência do Tribunal de Justiça do Tocantins (fls. 33-54), que indeferiu o pedido, ante o entendimento de inocorrência de grave lesão à ordem e economia públicas e inexistência de efeito multiplicador da decisão (fls. 97-100). Contra tal decisão, o Estado do Tocantins interpôs recurso de Agravo Regimental. O Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins negou provimento ao agravo regimental em suspensão de liminar (fls. 127-130), pois entendeu inexistente efeito multiplicador e ausentes razões que infirmassem a decisão recorrida. O pedido de suspensão de liminar contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins é baseado em argumentos de lesão à ordem e economia públicas do Estado do Tocantins. Enfatiza o requerente que a liminar deferida, para construção de unidade especializada em prazo determinado, importaria em ato de interferência do Poder Judiciário no âmbito de atuação do Poder Executivo, em afronta ao princípio da independência dos Poderes, previsto no art. 2º da Constituição (fls. 08-09). Ademais, o requerente alega lesão à economia pública estadual, por ausência de previsão orçamentária, exigüidade de prazo para efetivação das medidas, ofensa ao princípio da reserva do possível e vedação legal e constitucional expressas de ordenação de despesas sem autorização legal (fls. 08-19). Em complementação, o Estado do Tocantins afirma que a liminar deferida esgotou, por completo, o objeto da ação civil pública, violando o art. 1º, § 3º, da Lei nº 8.437/92, que veda a concessão de liminar contra atos do poder público que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação (fls. 19-21). Decido. A base normativa que fundamenta o instituto da suspensão (Leis 4.348/64, 8.437/92, 9.494/97 e art. 297 do RI/STF) permite que a Presidência do Supremo Tribunal Federal, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspenda a execução de decisões concessivas de segurança, de liminar ou de tutela antecipada, proferidas em única ou última instância, pelos tribunais locais ou federais, quando a discussão travada na origem for de índole constitucional. Assim, é a natureza constitucional da controvérsia que justifica a competência do Supremo Tribunal Federal para apreciar o pedido de contracautela, conforme a pacificada jurisprudência desta Corte, destacando-se os seguintes julgados: Rcl 497-AgR/RS, rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, DJ 06.4.2001; SS 2.187-AgR/SC, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 21.10.2003; e SS 2.465/SC, rel. Min. Nelson Jobim, DJ 20.10.2004. A ação civil pública pleiteia condenação do Estado de Tocantins em obrigação de fazer, para implantação de programa de internação e semiliberdade de adolescentes infratores, em unidade especializada, na Comarca de Araguaína/TO, no prazo de 12 meses. Nesse sentido, aponta-se: violação aos direitos dos adolescentes e à política básica de atendimento a adolescentes, previstos no art. 227, caput e §3º da Constituição e concretizados nas determinações do ECA (art. 94, art. 120, §2º, e art. 124). Por outro lado, a suspensão de liminar aponta: violação ao art. 2º, CF/88, consistente em interferência direta nas atividades do Poder Executivo; ausência de previsão orçamentária (art. 163, I; art.165; art. 166, §§3º e 4º; art. 167, III, todos da CF/88); violação ao princípio da reserva do possível, exigüidade do prazo e possibilidade de efeito multiplicador do presente caso. Não há dúvida, portanto, de que a matéria discutida na origem reveste-se de índole constitucional. Feitas essas considerações preliminares, passo à análise do pedido, o que faço apenas e tão-somente com base nas diretrizes normativas que disciplinam as medidas de contracautela. Ressalte-se, não obstante, que, na análise do pedido de suspensão de decisão judicial, não é vedado ao Presidente do Supremo Tribunal Federal proferir um juízo mínimo de delibação a respeito das questões jurídicas presentes na ação principal, conforme tem entendido a jurisprudência desta Corte, da qual se destacam os seguintes julgados: SS 846-AgR/DF, rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 29.5.96; SS 1.272-AgR/RJ, rel. Ministro Carlos Velloso, DJ 18.5.2001. No presente caso, discute-se possível colisão entre (1) o princípio da separação dos Poderes, concretizado pelo direito do Estado do Tocantins definir discricionariamente a formulação de políticas públicas voltadas a adolescentes infratores e (2) a proteção constitucional dos direitos dos adolescentes infratores e de uma política básica de seu atendimento. Eis o que dispõe o artigo 227 da Constituição: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: [...] V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; [...]” É certo que o tema da proteção da criança e do adolescente e, especificamente, dos adolescentes infratores é tratado pela Constituição com especial atenção. Como se pode perceber, tanto o caput do art. 227, como seu parágrafo primeiro e incisos possuem comandos normativos voltados para o Estado, conforme destacado acima. Nesse sentido, destaca-se a determinação constitucional de absoluta prioridade na concretização desses comandos normativos, em razão da alta significação de proteção aos direitos da criança e do adolescente. Tem relevância, na espécie, a dimensão objetiva do direito fundamental à proteção da criança e do adolescente. Segundo esse aspecto objetivo, o Estado está obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo deste direito. Como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot)(Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161). Nessa dimensão objetiva, também assume relevo a perspectiva dos direitos à organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren), que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos e procedimentos indispensáveis à sua efetivação. Parece lógico, portanto, que a efetividade desse direito fundamental à proteção da criança e do adolescente não prescinde da ação estatal positiva no sentido da criação de certas condições fáticas, sempre dependentes dos recursos financeiros de que dispõe o Estado, e de sistemas de órgãos e procedimentos voltados a essa finalidade. De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de um espaço amplo de discricionariedade estatal, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico. Por outro lado, alega-se, nesta suspensão de segurança, possível lesão à ordem e economia públicas, diante de determinação judicial para implantação de programa de internação e regime de semiliberdade, em unidade especializada (a ser construída), com prazo determinado de 12 meses. Nesse sentido, o argumento central apontado pelo Estado do Tocantins reside na violação ao princípio da separação de poderes (art. 2º, CF/88), formulado em sentido forte, que veda intromissão do Poder Judiciário no âmbito de discricionariedade do Poder Executivo estadual. Contudo, nos dias atuais, tal princípio, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz da realidade constitucional brasileira, num círculo em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam. Nesse sentido, entendo inexistente a ocorrência de grave lesão à ordem pública, por violação ao art. 2º da Constituição. A alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Poder Executivo estadual do Tocantins, em cumprir seu dever constitucional de garantia dos direitos da criança e do adolescente, com a absoluta prioridade reclamada no texto constitucional (art. 227). Da mesma forma, não vislumbro a ocorrência de grave lesão à economia pública. Cumpre ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em razão da absoluta prioridade determinada na Constituição, deixa expresso o dever do Poder Executivo dar primazia na consecução daquelas políticas públicas, como se apreende do seu art. 4º: “Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de primazia compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.” Não se pode conceber grave lesão à economia do Estado do Tocantins, diante de determinação constitucional expressa de primazia clara na formulação de políticas sociais nesta área, bem como na alta prioridade de destinação orçamentária respectiva, concretamente delineada pelo ECA. A Constituição indica de forma clara os valores a serem priorizados, corroborada pelo disposto no ECA. As determinações acima devem ser seriamente consideradas quando da formulação orçamentária estadual, pois se tratam de comandos vinculativos. Ressalte-se que no próximo dia 13 de julho se comemorarão os 18 (dezoito) anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem se cristalizado como um importante avanço na delimitação das políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente. Ademais, a decisão impugnada está em consonância com a jurisprudência dessa Corte, a qual firmou entendimento, em casos como o presente, de que se impõe ao Estado a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, a efetiva proteção de direitos constitucionalmente assegurados, com alta prioridade, tais como: o direito à educação infantil e os direitos da criança e do adolescente. Nesse sentido, destacam-se os seguintes julgados: RE-AgR 410.715/SP, 2ª T. Rel. Celso de Mello, DJ 03.02.2006; RE 431.773/SP, rel. Marco Aurélio, DJ 22.10.2004. Do julgamento do RE-AgR 410.715/SP, 2ª T. Rel. Celso de Mello, DJ 03.02.2006, destaca-se o seguinte trecho: “[...] A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. [...]” Não há dúvida quanto à possibilidade jurídica de determinação judicial para o Poder Executivo concretizar políticas públicas constitucionalmente definidas, como no presente caso, em que o comando constitucional exige, com absoluta prioridade, a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, claramente definida no Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim também já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ-Resp 630.765/SP, 1ª Turma, relator Luiz Fux, DJ 12.09.2005). No presente caso, vislumbra-se possível proteção insuficiente dos direitos da criança e do adolescente pelo Estado, que deve ser coibida, conforme já destacado. O Poder Judiciário não está a criar políticas públicas, nem usurpa a iniciativa do Poder Executivo. A decisão impugnada apenas determina o cumprimento de política pública constitucionalmente definida (art. 227, caput, e §3º) e especificada de maneira clara e concreta no ECA, inclusive quanto à forma de executá-la. Nesse sentido é a lição de Christian Courtis e Victor Abramovich(ABRAMOVICH, Victor; COURTS, Christian, Los derechos sociales como derechos exigibles, Trotta, 2004, p. 251): “Por ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de diseñar políticas públicas, sino la de confrontar el diseño de políticas asumidas con los estándares jurídicos aplicables y - en caso de hallar divergencias - reenviar la cuestión a los poderes pertinentes para que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia. Cuando las normas constitucionales o legales fijen pautas para el diseño de políticas públicas y los poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida, corresponderá al Poder Judicial reprochar esa omisión y reenviarles la cuestión para que elaboren alguna medida. Esta dimensión de la actuación judicial puede ser conceptualizada como la participación en un entre los distintos poderes del Estado para la concreción del programa jurídico-político establecido por la constitución o por los pactos de derechos humanos.” (sem grifo no original) Contudo, conforme informação contida nas razões do Estado do Tocantins, este foi intimado da decisão de primeiro grau em 19 de outubro de 2007 (fl. 115). Assim, o prazo de 12 meses se extinguirá em 19 de outubro de 2008. A partir desta data, conforme a decisão impugnada, caso o Estado de Tocantins não tenha construído unidade especializada, ou venha a abrigar adolescentes infratores em outra localidade, que não uma unidade especializada, arcará com multa diária de R$ 3.000,00 (três mil reais), por prazo indeterminado. Entendo que tão somente neste ponto a decisão impugnada gera grave lesão à economia pública, ou seja, apenas quanto à fixação de multa por não construção, em 12 meses, de unidade especializada para abrigo dos menores na comarca de Araguaína. Para se chegar a essa constatação, basta observar que a fixação de multa em valor elevado e sem limitação máxima constitui ônus excessivo ao Poder Público e à coletividade, pois impõe remanejamento financeiro das contas estaduais, em detrimento de outras políticas públicas estaduais de alta prioridade. Dessa forma, remanesce íntegra a decisão, quanto à possibilidade de multa por abrigar adolescentes infratores em cadeias comuns, em detrimento de abrigá-los em outras unidades especializadas existentes no Estado. Destaco, contudo, que não se impede a fixação de multa por descumprimento de decisão judicial. O que não se pode perder de vista é a possibilidade de vultoso prejuízo à coletividade, por multa fixada em decisão liminar baseada em juízo cognitivo sumário. Portanto, a determinação constitucional de absoluta prioridade na proteção dos direitos da criança e do adolescente (art. 227, CF/88) evidencia tanto a dimensão objetiva de proteção destes direitos fundamentais, quanto a proibição de sua proteção insuficiente pelo Estado de Tocantins, por impossibilitar condições fáticas e concretas de implantação de programa de internação e semiliberdade na Comarca de Araguaína/TO. Não há violação ao princípio da separação dos Poderes quando o Poder Judiciário determina ao Poder Executivo estadual o cumprimento do dever constitucional específico de proteção adequada dos adolescentes infratores, em unidade especializada, pois a determinação é da própria Constituição, em razão da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 227, §1º, V, CF/88). A proibição da proteção insuficiente exige do Estado a proibição de inércia e omissão na proteção aos adolescentes infratores, com primazia, com preferencial formulação e execução de políticas públicas de valores que a própria Constituição define como de absoluta prioridade. Essa política prioritária e constitucionalmente definida deve ser levada em conta pelas previsões orçamentárias, como forma de aproximar a atuação administrativa e legislativa (Annäherungstheorie) às determinações constitucionais que concretizam o direito fundamental de proteção da criança e do adolescente. Assim, não vislumbro grave lesão à ordem e economia públicas, com exceção da fixação de multa por não construção, em doze meses, de unidade especializada para abrigar adolescentes infratores na Comarca de Araguaína/TO. Diante o exposto, defiro parcialmente o pedido de suspensão, tão-somente quanto à fixação de multa diária por descumprimento da ordem judicial de construção de unidade especializada, em doze meses, na comarca de Araguaína/TO. Dessa forma, diante da determinação da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente, mantenho os efeitos da decisão impugnada quanto à (1) implantação, em doze meses, de programa de internação e semiliberdade de adolescentes infratores, na comarca de Araguaína/TO e (2) de proibição, sob pena de multa diária, de abrigar adolescentes infratores em outra unidade que não seja uma unidade especializada (nos termos do ECA). Publique-se. Comunique-se com urgência. Brasília, 8 de julho de 2008. Ministro Gilmar Mendes Presidente. (SL 235, Relator(a): Min. PRESIDENTE, Presidente Min. GILMAR MENDES, julgado em 08/07/2008, publicado em DJe-143 DIVULG 01/08/2008 PUBLIC 04/08/2008 RTJ VOL-00210-03 PP-01236)